Manual de Instruções

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sexta-feira, 16 de março de 2007

Palavra e conhecer - o conhecimento é absoluto?

Existe uma relação muito estreita entre palavra, conhecimento e objeto: conhecer um objeto é ser capaz de descrevê-lo em palavras, isso é empiricamente tautológico. Podemos ver facilmente na vida cotidiana que ao pedimos a uma pessoa demonstrar seu conhecimento sobre determinado assunto ou objeto ela começará a descrevê-lo, e que podemos consultar manuais de instruções para aprender sobre o funcionamento de outros objetos, ou ainda podemos nos valer de livros didáticos para aprender algumas coisas. Facilmente percebemos então que não existe conhecimento que não possa ser registrado em palavras, pois todo conhecimento é uma descrição de algum objeto. Mesmo todo o conhecimento de fonte empírica ou sensorial deve poder ser transformado em uma descrição.
Mas percebemos que nem sempre as pessoas concordam no uso das palavras. Na vida cotidiana percebemos várias situações de falha de comunicação simplesmente porque uma palavra significava uma coisa para quem a falava e outra coisa para quem a ouviu, como quando se pede uma coisa e é trazida outra. Isso sem contar os casos em que o falante usa palavras que o ouvinte não conhece, seja por pertencer a um outro idioma ou a um outro grau de instrução. Percebemos que as palavras não possuem significação fixa, devendo esta ser pré-fixada antes de seu uso. É esse o papel, em parte, de um idioma: pré-fixar significações para as palavras. Quando as palavras têm sua significação fixada, o ato de comunicação pode ocorrer normalmente entre duas pessoas que partilhem das mesmas convenções pré-fixadoras de significações para as palavras.
Mas parece que temos uma questão escondida aqui: se as palavras têm que ter suas significações pré-definidas por convenções lingüísticas e se o conhecimento só pode ser em palavras, o conhecimento teria que ser relativo às convenções que pré-fixam as significações das palavras? Ou, dizendo mais claramente, o conhecimento é relativo à pessoa que conhece? O objetivo deste texto é tentar oferecer uma resposta a essa pergunta, bem como discorrer sobre as implicações das mesmas.

1. O conhecimento é relativo ou absoluto?
Peguemos uma palavra qualquer, por exemplo "rato". Será que ela tem a mesma significação em todas as vezes em que ela é usada? Podemos perceber facilmente na nossa vivência que não: por vezes ela é empregada para se referir a um animal pequeno, por vezes a uma pessoa de caráter duvidoso e mesquinho, e por vezes para um freqüentador muito assíduo de um dado local. Com isso podemos concluir facilmente que uma mesma palavra, em um mesmo conjunto de convenções lingüísticas, pode vir a ter significações diferentes, dependendo do uso que se faz dela.
Se a significação da palavra depende do uso que se faz dela, logo devemos analisar um pouco sobre como se dão esses usos. Como podemos perceber no exemplo acima, a mesma palavra foi usada em contextos diferentes pela mesma pessoa e por isso recebeu significações distintas. Mas como saber qual significação a palavra recebeu em cada contexto? Observando a reação das pessoas que ouviram a palavra sendo usada: se elas reagiram da maneira que o falante esperava que elas reagissem, então elas usaram a mesma significação para a palavra. Para ilustrar o que eu digo: se o falante espera que as pessoas corressem quando ele gritar "há um rato ali!", ele gritar e uma pessoa não correr, essa pessoa que não correu não conferiu igual significação às palavras ditas por quem gritou.
Assim sendo, percebemos que antes de haver conhecimento deve haver uma convenção lingüística que pré-fixe a significação das palavras. Mas somente isso não basta: se conhecer um objeto é ser capaz de descrevê-lo, é preciso que pelo menos uma outra pessoa partilhe das mesmas convenções lingüísticas que as minhas, para que eu seja capaz de descrever meus conhecimentos para ela. A implicação disto é: se eu usar uma palavra a que meu ouvinte não dê a mesma significação que eu, então não haverá conhecimento, pois para ele não terá significação o que foi dito. Uma implicação menos direta, mas que eu analisarei em outro texto, é: o conhecimento nunca é para-si, mas é ex ego.
Sendo assim, podemos concluir facilmente que o conhecimento não pode ser absoluto, pois depende de uma convenção que deve ser aceita por pelo menos duas pessoas. Mas, ele poderia ser relativamente absoluto, isto é, ser absoluto dentro das mesmas convenções lingüísticas? Nesse ponto cabe a pergunta: será que mesmo dentro de uma mesma convenção lingüística as palavras terão significação uniforme? O exemplo da palavra "rato" mostra que não, mas isso poderia ser facilmente contornado afirmando que em contextos diferentes as convenções pré-fixariam significações diferentes para as palavras. Mas se pudermos encontrar uma situação em que não haja como afirmar que as pessoas que partilham uma mesma convenção lingüística atribuíram a mesma significação às palavras, poderemos derrubar a relativa absolutidade do conhecimento.
Pensemos na seguinte situação, que pode ser difícil de acontecer mas não é impossível: duas pessoas que vivem sob as mesmas convenções lingüísticas estão de frente para um saleiro e um açucareiro. Uma delas diz: "Passe o sal" e a outra entrega-lhe o açucareiro, porque atribuiu a palavra "sal" a significação que a outra atribuiu à palavra "açúcar", e vice-versa (talvez porque no pote de açúcar estivesse escrito "sal", e vice-versa). Isso mostra que mesmo dentro de uma mesma convenção lingüística as pessoas podem atribuir significações diferentes para as palavras. A implicação disso é que o conhecimento só pode ser relativo ao falante, visto que somente ele sabe com certeza a significação do que diz. Ao mesmo tempo, isso implica que nem sempre as pessoas conseguem se comunicar eficientemente, pois nem sempre atribuem as mesmas significações às mesmas palavras.

2. Existe comunicação entre as pessoas?
Vamos nos ocupar um pouco com o que vem a ser comunicação entre pessoas. Na vida prática percebemos que qualquer ato de comunicação entre pessoas ocorre quando elas estão falando umas com as outras e reagindo das maneiras esperadas pelos falantes. Ou seja, só pode haver comunicação entre pessoas quando elas compartilham as mesmas convenções lingüísticas que pré-fixam as significações das palavras.
Como vimos na parte anterior do texto, não se pode afirmar com certeza que sempre as pessoas que se comunicam usarão as mesmas convenções: podemos pedir sal e receber açúcar. Não temos como garantir que as pessoas em ato de comunicação usarão as mesmas convenções, o que equivale a dizer que nem sempre a interação de pessoas envolvendo palavras será uma comunicação. Se usarmos a definição do parágrafo anterior, vamos concluir que simplesmente em alguns casos em que pessoas conversaram longamente não houve comunicação, e isso parece absurdo: pessoas que não se entendem não conversam muito. Isso indica que a definição de comunicação parece precisar ser revista, e que adotar as convenções do senso comum não vai resultar em bons efeitos aqui.
Vamos enfraquecer ao máximo a definição de comunicação: diremos que esta ocorre quando pessoas falam e pessoas escutam o que está sendo dito. Essa definição de imediato não serve, pois podemos imaginar um mexicano e um japonês falando suas línguas natais e se ouvindo mutuamente, mas se eles usaram somente palavras creio não ser possível ter havido comunicação aqui. Percebe-se que é necessário algum elemento a mais para que se haja comunicação de fato.
Como esse elemento não pode envolver o igual uso das significações das palavras, podemos tentar definir comunicação como sendo o ato em que pessoas que partilham uma mesma convenção lingüística falam e ouvem umas às outras. Ainda assim percebemos faltar alguma coisa, senão um diálogo como: "a cor cadeira do número cinco é verde?" e "sim, chovendo estou" seria uma comunicação - obviamente não é. Conclui-se que ser capaz de proferir frases com significação e que o ouvinte atribua a mesma significação à frase que o falante é um requisito fundamental para a comunicação, não obstante pareça absurdo se analisado pelo senso comum.
Assim, concluímos que a comunicação entre pessoas só pode se dar quando elas partilham uma mesma convenção lingüística e estão atribuindo as mesmas significações às mesmas palavras usadas nas mesmas situações. Isso implica em que, se conhecer é ser capaz de descrever, nem sempre será possível a comunicação de conhecimentos, visto que nem sempre estará sendo atribuída a mesma significação pelo falante e pelo ouvinte à frase.

Com isso concluímos que o conhecimento é relativo à pessoa que conhece, bem como não há garantias que uma pessoa atribua a mesma significação aos conhecimentos de uma outra.

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