Manual de Instruções

Caros leitores, após muito tempo decidi quebrar alguns de meus votos de silêncio. Um deles inclui voltar a escrever por aqui. O outro, falar de política. Tarja Preta versão 3.0, divirtam-se!
Caso você encontre em algum dos meus textos algo interessante e queira compartilhar com seus amigos ou em seu site, revista, jornal, etc., sinta-se à vontade. Basta indicar a fonte e recomendar a leitura do blog, e todos os textos que estão aqui estarão ao seu dispor.

P. S.: decifra-me ou devoro-te!

segunda-feira, 16 de julho de 2007

NATUREZA HUMANA E EPISTEMOLOGIA EM RENÉE DES-CARTES: UM PEQUENO ESTUDO DA DÚVIDA METÓDICA E CERTEZA INABALÁVEL NO DISCURSO DO MÉTODO

NATUREZA HUMANA E EPISTEMOLOGIA EM RENÉE DESCARTES: UM PEQUENO ESTUDO DA DÚVIDA METÓDICA E CERTEZA INABALÁVEL NO DISCURSO DO MÉTODO


Por Luís Fernando Carvalho Cavalheiro
Nota: eu não estava com paciência para acertar as citações bibliográficas.


Introdução

Descartes apresenta no texto um resumo dos passos por ele dado enquanto procurava uma verdade inquestionável para fundamentar toda a sua filosofia, e ao mesmo tempo estabelece as características que a natureza humana possui. Como me parece ser impossível dissociar as investigações cartesianas da sua concepção de homem, as duas vão ser apresentadas simultaneamente. Trata-se de uma concepção antropocêntrica e racionalista, pois a partir da razão humana Descartes obtém todas as suas certezas. Não existe certeza inabalável antes da certeza da existência do eu, do homem que pensa, e todas as certezas inabaláveis às quais ele chega (inclusive a da existência de Deus) são derivadas de alguma maneira da certeza inabalável da existência do homem que pensa.

Por motivos de clareza, o escrito foi dividido em três partes. A primeira trata da dúvida metódica de Descartes, o método pelo qual ele atinge a sua primeira certeza inabalável – o famoso cogito ergo sum. Escondida nesta primeira parte está uma teoria acerca do conhecimento humano, como o conhecimento se dá a conhecer ao homem. A segunda parte tratará das certezas que ele deriva a partir desta – até concluir a existência da alma e de como ela é mais fácil de conhecer do que o corpo. Essa segunda parte é uma dedução detalhada a partir da certeza inabalável expressa pela máxima do cogito. A terceira parte trata da perfeição, indo de perfeição em perfeição até chegar a conclusão da existência de um ser mais perfeito do que ele e que é responsável por ele existir – ou seja, Deus. Esta terceira parte é uma prova por indução sobre a perfeição humana.

1. A Dúvida do Eu

Na Quarta Parte do Discurso do Método Descartes adota como regra prática o princípio da certeza inabalável, como ele mesmo enuncia no seguinte trecho:

"Havia bastante tempo observara que, no que concerne aos costumes, é às vezes preciso seguir opiniões, que sabemos serem muito duvidosas, como se não admitissem dúvidas, conforme já foi dito acima; porém, por desejar então dedicar-me apenas a pesquisa da verdade, achei que deveria agir exatamente ao contrário, e rejeitar como totalmente falso tudo aquilo em que pudesse supor a menor dúvida, com o intuito de ver se, depois disso, não restaria algo em meu crédito que fosse completamente incontestável." [i]

Percebe-se que o critério para um conhecimento ser verdadeiro é não haver a possibilidade de duvidar desse conhecimento. O "tribunal" pelo qual o conhecimento teria que passar para ser reconhecido como verdadeiro é o discernimento humano, ou seja, é verdadeiro o conhecimento que seja tão claro aos olhos da razão humana que não possa ser duvidado. Assim deve ser também com as fontes do conhecimento: um conhecimento só poderá ser considerado verdadeiro se e somente se sua fonte não puder ser posta em duvida. Para Descartes, isso invalida os dados sensíveis como fonte do conhecimento, conforme ele mesmo diz: "Ao considerar que os nossos sentidos às vezes nos enganam, quis presumir que não existia nada que fosse tal como eles nos fazem imaginar." Mesmo a razão pode cometer paralogismos, obter conclusões inválidas das premissas dadas, e por isso é igualmente digna de confiança. O homem está sujeito ao erro, à falha, e por isso suas percepções e sua razão não são fontes de conhecimento que não possam ser postas em dúvida. Contra a razão Descartes levanta ainda o famoso argumento do sonho, melhor desenvolvido nas Meditações, mas que no Discurso é exposto da seguinte forma:

"E, enfim, considerando que quaisquer pensamentos que nos ocorrem quando estamos acordados nos podem também ocorrer enquanto dormimos, sem que exista nenhum, nesse caso, que seja correto, decidi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais corretas do que as ilusões de meus sonhos." [ii]

Será que não resta nada de certo ao homem? O homem parece ser condenado a viver no erro, na falha, pois todas as formas que ele tem de atingir o conhecimento são passíveis de serem postas em dúvida – e Descartes efetivamente duvida tanto da razão quanto dos dados sensíveis. Não existem certezas até este ponto, apenas o ceticismo metodológico cartesiano. Com efeito, o homem pode duvidar de todos os conhecimentos que chegam a ele, e até agora não há maneira de estruturar uma filosofia apenas em dúvidas. O argumento do Gênio Maligno não aparece no Discurso, e é essa ausência que caracteriza o vínculo da epistemologia e antropologia filosófica cartesianas: o conhecimento e as certezas são humanos, são validados pelo homem; é um processo que se dá na alma humana que permite ao homem conhecer, mesmo que até este ponto ele não tenha certeza de nada. A própria existência do homem não está, ainda, assegurada: nem a razão, nem os dados sensíveis foram validados como fontes de conhecimento verdadeiro, e o conhecimento da existência do homem não se dá a conhecer ao homem de uma maneira que não seja essas. Ao homem, o centro da filosofia cartesiana, uma filosofia que pretende provar que Deus existe a partir da existência humana, parece restar apenas a dúvida.

2. A Certeza do Eu

Descartes percebeu que o ato de duvidar traz consigo um forte compromisso existencial: para haver a dúvida, é preciso haver algo que duvide. Assim, de alguma maneira a dúvida garante a existência, como ele escreve: "Porém, logo em seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa." Tal afirmação encerra em si, de acordo com Descartes, uma certeza muito forte, de tal sorte que "as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo": eis o famoso cogito ergo sum, o penso, logo existo tão conhecido por todos. Pensar que tudo era falso, isto é, duvidar, é a garantia da existência do homem.

Disso ele conclui que um homem pode pensar que não existe o mundo, as coisas e tudo o que há para ser conhecido com a razão ou com os sentidos, mas não pode pensar que não pensa – e por conseqüência, não pode pensar que não existe – mas ao mesmo tempo não tem razão para acreditar que continua existindo mesmo enquanto não pensa. Disso Descartes conclui que o homem é uma substância cuja natureza ou essência consiste apenas no pensar, e que para isso não precisa estar em lugar algum, nem precisa de nada que seja material para existir. Deste raciocínio Descartes conclui que a alma [iii] é distinta do corpo e é mais fácil de conhecer do que ele. O homem é um ser pensante, que só existe com certeza enquanto emprega sua capacidade de pensar – neste ponto o pensar não precisa mais ser duvidar, visto que ele já garantiu uma certeza: pensar garante ao homem existência – mas que existe apenas enquanto pensa. Não há ainda nada que garanta a existência do homem que não seja o ato de pensar.

Analisando essa primeira certeza inabalável, Descartes percebe que qualquer coisa que seja concebida clara e distintamente é necessariamente verdadeira. Trata-se de uma das famosas regras do método cartesiano, encontrando sua formulação amparada pela certeza inabalável que constituirá a base de todo a filosofia de Descartes, como se pode perceber no texto que se segue:

"E, ao perceber que nada há no eu penso, logo existo, que me dê a certeza de que digo a verdade, salvo que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir, concluí que poderia tomar por regra geral que as coisas que concebemos muito clara e distintamente são todas verdadeiras, havendo somente alguma dificuldade em notar bem quais são as que concebemos distintamente." [iv]

3. A Perfeição do Eu

A natureza humana, por ser capaz de duvidar, não é a maior perfeição que existe, e por ser o homem capaz de pensar em algo perfeito deve existir, segundo Descartes, algum ser mais perfeito que o homem:

"Depois, havendo refletido a respeito daquilo que eu duvidava, e que, por conseguinte, meu ser não era totalmente perfeito, pois via claramente que o conhecer é perfeição maior do que o duvidar, decidi procurar de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que eu era; e descobri, com evidência, que devia ser de alguma natureza que fosse realmente mais perfeita." [v]

Parece coerente com o desenvolvido até aqui que Descartes não tenha atribuído natureza mais perfeita que a humana a nada que pudesse ser conhecido pelos sentidos ou pela razão, pois, em caso de engano essas coisas seriam invenções do homem e, portanto, menos perfeitas do que ele. A idéia de um ser mais perfeito do que o homem não pode ser uma invenção do homem, pois seria contraditória: tal ser seria na verdade menos perfeito do que o homem, pois seria uma criação deste. Se o homem é capaz de pensar em um ser mais perfeito do que ele só pode ser, segundo Descartes, porque esse ser de fato exista e tenha inculcado no homem esse pensamento, e esse ser só poderia ser Deus, conforme se lê abaixo:

"Mas não podia ocorrer o mesmo com a idéia de um ser mais perfeito do que o meu; pois fazê-la sair do nada era evidentemente impossível; e, visto que não é menos repulsiva a idéia de que o mais perfeito seja uma conseqüência e uma dependência do menos perfeito do que a de admitir que do nada se origina alguma coisa, eu não podia tirá-la tampouco de mim próprio. De maneira que restava somente que tivesse sido colocada em mim por uma natureza que fosse de fato perfeita do que a minha, e que possuísse todas as perfeições de que eu poderia ter alguma idéia, ou seja, para dizê-lo numa única palavra, que fosse Deus." [vi]

Assim, podemos perceber que de maneira alguma o homem é completamente perfeito, pois senão ele seria esse ser mais perfeito e não haveria a necessidade da divindade. Ao mesmo tempo, o homem é capaz de ver em si algumas imperfeições e reconhecer que não possui algumas perfeições, de tal sorte que o conhecimento dessas perfeições deveria vir de algum lugar, de algum ser que as possuísse – Deus, em uma palavra. Para conhecer a natureza de Deus, basta fazer uma lista das idéias que seria perfeição possuir, e excluir toda e qualquer idéia associada a imperfeições (idéias tais como dúvida, tristeza, etc.). Da perfeição da natureza de Deus e da premissa que nenhuma composição é perfeita, Descartes conclui que Deus não tem uma parte corporal. Tal como um objeto da geometria, não é necessário que Deus tenha existência material para que ele exista de fato, tal como se lê:

"Enquanto, ao voltar a examinar a idéia que eu tinha de um Ser perfeito, verificava que a existência estava aí inclusa, da mesma maneira que na de um triângulo está incluso serem seus três ângulos iguais a dois retos, ou na de uma esfera serem todas as suas partes igualmente distantes do seu centro, ou ainda mais evidentemente; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo que Deus, que é esse Ser perfeito, é ou existe quanto seria qualquer demonstração de geometria." [vii]

Para Descartes, todas as idéias são oriundas de Deus, pois senão não haveria forma de diferenciar um sonho da realidade:

"Pois, de onde sabemos que os pensamentos que nos surgem em sonhos são menos verdadeiros do que os outros, se muitos, com freqüência, não são menos vivos e nítidos? E, mesmo que os melhores espíritos estudem o caso tanto quanto lhes agradar, não acredito que possam oferecer alguma razão que seja suficiente para dirimir essa dúvida, se não presumirem a existência de Deus." [viii]

Descartes alega isso como sendo uma conseqüência do princípio de clareza e distinção adotada no início da Quarta Parte do Discurso e ao mesmo tempo que esse princípio é derivado da natureza perfeita de Deus. Dele não pode se originar a falsidade, pois seria admitir que é possível que a verdade e a perfeição se originem do nada. Por isso, o fato dos sentidos poderem ser enganosos e os sonhos poderem emular a razão com perfeição não serve para invalidar tanto os sentidos quanto a razão como fonte do conhecimento, pois aquilo que é verdadeiro é verdadeiro em Deus. Os dados dos sentido exigem discernimento, enquanto os sonhos costumam não ser evidentes, mas o conhecimento verdadeiro se dá a conhecer pela vontade de Deus. O homem conhece aquilo que é da vontade de Deus permitir o homem conhecer.

Bibliografia

DESCARTES, Renée. Quarta Parte. In: Discurso do Método.


[i] DESCARTES, Renée. Discurso do Método.

[ii] DESCARTES, Renée. Discurso do Método.

[iii] Para Descartes, o pensamento se dava na alma do homem.

[iv] DESCARTES, Renée. Discurso do Método.

[v] DESCARTES, Renée. Discurso do Método.

[vi] DESCARTES, Renée. Discurso do Método.

[vii] DESCARTES, Renée. Discurso do Método.

[viii] DESCARTES, Renée. Discurso do Método.

Nenhum comentário:

Powered By Blogger