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segunda-feira, 16 de julho de 2007

A CONCEPÇÃO DE NATUREZA PARA RENÉE DESCARTES E GALILEU GALILEI

A CONCEPÇÃO DE NATUREZA PARA RENÉE DESCARTES E GALILEU GALILEI

Por Luís Fernando Carvalho Cavalheiro

Nota: mais uma vez, eu não me preocupei em fazer as devidas referências bibliográficas. No entanto, para os interessados neste tipo de informação posso dizer que só me vali de dois livros para compor este texto: O Ensaiador, de Galileu, e as Meditações de Descartes. Os dois textos podem ser encontrados na coleção Os Pensadores, da Editora Abril – eu fiz uso da edição de capa dura e azul, da década de 70.

1. Introdução

O objetivo deste trabalho é analisar a concepção de natureza para dois autores importantes para a história do pensamento ocidental: Renée Descartes e Galileu Galilei. O período histórico em que esses autores escreveram foi a Idade Moderna, logo após o término da Idade Medieval; Galileu inclusive vivenciou o chamado Renascimento (ou Renascença, ou ainda Risorgimento) na península itálica.

A obra de Galileu a ser usada como referencia será "O Ensaiador", que consta no volume XII da coleção "Os Pensadores". Neste escrito (elaborado em forma de uma carta ao Monsenhor Cesarini), o autor analisa as objeções de Lotário Sarsi ao escrito de Mário Guiducci. No desenvolver dessa análise aprendemos uma concepção de natureza que é típica do momento e local históricos em que Galileu viveu, que é, a bem dizer, a concepção "padrão" de natureza para os autores do período, como bem o disse Galileu: "A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto".

Em um primeiro momento pode parecer estranho a inclusão de Descartes neste trabalho, já que a natureza não foi um de seus assuntos de primário interesse na filosofia, e tampouco é intenção minha afirmar semelhante coisa. Mas, ao nos lembrarmos bem das "Meditações", poderemos intuir a concepção que Descartes tinha da natureza; explicitamente, conforme o parágrafo 22 da Sexta Meditação, "Pois, por natureza, considerada em geral, não entendo agora outra coisa senão o próprio Deus, ou a ordem e a disposição que Deus estabeleceu nas coisas criadas". Essa afirmação nos faz buscar, desde a Primeira até a Terceira Meditação, os argumentos usados pelo autor para justificar a existência de Deus – e, indiretamente, como se deve conceber a natureza.

Por fim haverá uma pequena conclusão, em que se tentará levantar alguns pontos semelhantes a alguns pontos dissonantes das duas concepções da natureza. De maneira concisa, serão apresentadas, também, uma pequena conceituação formal de cada uma dessas concepções.

2. Natureza para Galileu: Deus, o Grande Geômetra

Galileu Galilei foi um importante filósofo, matemático e astrônomo italiano, nascido em 1564 e morto em 1642. Suas observações no campo da astronomia e seus estudos matemáticos levaram-no a concluir, entre outras coisas, que a natureza é um grande manual de geometria escrito por Deus e acessível apenas para quem conceber e compreender essa linguagem. Seus estudos em astronomia o levaram a corroborar as teorias heliocêntricas de Copérnico, o que levou a Igreja a ameaçá-lo com excomunhão se não negasse. Ele passou os últimos anos de sua vida em prisão domiciliar. Galileu viveu durante o Renascimento Italiano, movimento cultural que marcou, com todas as pompas, o rompimento com a Idade Média e, nessa época, a cultura clássica estava inspirando novamente os filósofos e cientistas em geral. Além disso, o pensador renascentista foi tomado pelo espírito de experimentação: era preciso comprovar as teorias, era preciso experimentar teorias para formular novas.

O redescobrimento dos clássicos levou os pensadores renascentistas a valorizarem, tal como fez Platão, Aristóteles, Euclides e outros, sobremaneira a geometria enquanto método de pesquisa; essa importância aparece claramente nos dizeres do pórtico da Academia de Platão: "Que não se permita entrar aqui aqueles que não sejam versados em geometria". Foi uma marca indelével dos filósofos do período moderno justamente os estudos sobre matemática, geometria e álgebra. Uma prova disso que até hoje muitos modelos matemáticos propostos nessa época ainda são válidos, desde a geometria analítica de Descartes até os modelos matemáticos propostos por Leibiniz e aproveitados por Alan Turing para a formulação dos esquemas do computador digital.

Mas voltando a Galileu, em "O Ensaiador" percebe-se facilmente os aspectos que a natureza deva possuir para ele:

- Natureza é algo existente, percebível pelos sentidos;

- Natureza é algo que, para ser conhecido, precisa ser experimentado;

- Natureza é algo que pode ser reduzido à matemática e à geometria.

Sobre o primeiro ponto, afirma-se que, se a natureza não fosse considerada existente por Galileu, não se torna possível para ele estudá-la de maneira convincente e aprofundada. Podemos perceber que, pelo menos no campo da astronomia, Galileu dedica uma seriedade aos seus estudos que torna-se impossível crer que, para ele, não exista os objetos de seu estudo. Assim, podemos crer que, para Galileu, a natureza é algo existente.

Ainda sobre a existência da natureza, podemos afirmar que Galileu nunca contesta, nesse escrito, a existência dos astros e particularmente do cometa que ele podia divisar com sua luneta. Sobre o cometa, paira a dúvida que ele seja real ou uma mera aparência – mas em momento algum nega-se a existência do fenômeno. Ele observa os astros, e sobre ele faz interessantes análises descritivas, o que, com toda certeza, faz pressupor alguma existência – seja ela real ou aparente.

Ainda sobre a existência, devemos perceber que o universo (ou mundo translunar, na definição de Aristóteles) não é algo imutável e imóvel em sua concepção, e por conseguinte não é perfeito. Esse é um ponto de ruptura entre a filosofia natural dessa época e a filosofia natural de Aristóteles. A título de exemplo, tomemos o caso da Lua: para Aristóteles, ela seria lisa e perfeita, imutável como todos os outros corpos celestiais; para Galileu, que a observou em sua luneta e registrou essas observações no livro "Nunzio Sidereo", a Lua "não é lisa nem esférica (...) é feia, esburacada, coberta de montanhas e sulcada por vales profundos". O universo, por ter muitos movimentos (constatados alguns por Galileu), não pode ser perfeito conforme Aristóteles o definia – pois, para este, a perfeição pressupõe a imobilidade.

Da existência da natureza deriva-se facilmente que esta pode ser observada ou de algumas outras maneiras percebível pelos sentidos. É quase unânime a opinião de que os sentidos captam impressões do ambiente que lhes cercam. Essa definição supõe a existência de um meio externo para impressionar os sentidos. Para Galileu, esse meio externo existe e é a natureza, como podemos perceber pelo texto dele.

Ainda sobre a questão da percepção sensível, por inúmeras vezes Galileu usa, em "O Ensaiador", comparações sensíveis para determinar a validade ou a falsidade de algumas objeções de Lotário Sarsi (como exemplo cito o caso da amplificação da luneta, que, pelos argumentos de Sarsi, conforme Galileu coloca, conclui-se que a lua se encontra a dez milhas de distancia e o Sol, a quinze). Para ele valer-se desses argumentos, é necessário a existência de algum local válido para que ele possa obter tais argumentos. Esses argumentos são obtidos, por meio da percepção sensível de algum meio externo ao Galileu. Conforme percebe-se do próprio texto, esse meio externo não é nada mais, nada menos que a própria natureza.

Mas a simples existência da natureza, ou a faculdade desta em ser percebida pelos sentidos, não é suficiente para Galileu; com efeito, ele deposita particular crença forte na máxima de Protágoras: "O homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são". Assim, não basta saber que existe, é preciso conhecer.

Conhecer, para Galileu, não é um simples exercício da razão (ou, como se diária nos termos de hoje, não é uma prática de gabinete). Para conhecer alguma coisa, é preciso experimentar, observar, estudar. Não é célebre, entre os minimamente versados em história das ciências, o experimento realizado na Torre de Pisa, a saber, soltou-se uma bola de chumbo e uma pedra do alto da torre, e ambas chegaram ao mesmo tempo no chão? Para Galileu não era diferente: ele observava as estrelas, os cometas e os outros astros, ele fazia cálculos e cálculos sobre a geometria, ele observava e estudava o que porventura estivesse em um dos seus campos de interesse.

Ainda sobre esse ponto, pode-se afirmar que, a título de prova para as afirmações acima, pode-se citar inúmeras passagens do "Ensaiador", entre as quais os relatos sobre os cansaços e fadigas derivados da observação exaustiva das luas de Júpiter; os relatos sobre as observações do cometa; e os relatos sobre como Galileu construiu sua luneta baseando-se nos comentários que ouvira. Nelas pode-se perceber facilmente que para ele não eram as ciências exercícios de gabinete, mas havia a necessidade da comprovação via experimentação.

Ainda sobre esse ponto, pode-se afirmar que a experimentação de Galileu, pelo menos no concernente às ciências matemáticas e astronômicas, levaram-no a perceber certas propriedades das coisas, a saber, forma, numero, extensão, etc, que são, a priori, propriedades matemáticas ou geométricas. Para ilustrar isso cito a passagem em que explica o movimento do cometa, e argumenta que o mesmo deve ter se dado em uma circunferência máxima; as contraprovas geométricas que ele oferece ao monsenhor Cesarini propor a Lotário Sarsi, ou a análise da teoria de Tycho Brahe. Percebe-se facilmente a importância dada por Galileu à geometria, principalmente. Mas caberia facilmente aqui a pergunta: "Tudo bem, ele atribuiu importância à geometria. Mas por quê?"

Para isso precisamos notar antes a infalibilidade dada na época à matemática e à geometria. É desse período a expressão "Tão certo quanto dois mais três formarão sempre o numero cinco", cunhada por Descartes na Primeira Meditação. Segundo ainda Descartes: "(...) mas que a Aritmética e a Geometria, e as outras ciências desta natureza, que não tratam senão das coisas muito simples e gerais, sem cuidarem muito em se elas existem ou não na natureza, contém algo de certo e indubitável".

Parece-me que ponto chave desta frase de Descartes é justamente "sem cuidarem muito em se elas existem ou não na natureza". É uma questão até hoje aceita como verdadeira que uma coisa não se pode autodefinir sem cair numa circularidade ou regressão ao infinito. Cito aqui, a guisa de exemplo, uma das objeções feitas a qualquer teoria contratualista, a saber: "O contrato para ser obedecido, precisaria então de algum dispositivo pré-contrato que garantisse essa obediência, e esse dispositivo precisaria assim de algum outro anterior a ele, e assim ad infinituum", conforme afirma Peter Stemmer em seu artigo "Contratualismo Moral".

Assim sendo, nenhum elemento poderia ser usado para definir a natureza se estver inserido nela. É como usar de usar um contrato para justificar um contratualismo, ou da matemática para justificar a si mesma: circular. Mas a geometria não é entendida como pertencente à natureza, e assim pode ser usada para defini-la.

Ainda há um outro ponto não considerado aqui, que reza acerca da previsibilidade. Um conhecimento só tem utilidade para o homem se ele puder ser previsível, como podemos compreender do próprio Galileu quando este afirma que usar de um movimento irregular para explicar o movimento do cometa é a mesma coisa que nada afirmar. A matemática e a geometria são tidas, nessa época, como previsíveis – dois mais três sempre será cinco, um triângulo tem sempre três lados, e assim segue.

Torna-se quase auto-evidente o terceiro ponto, a saber, a natureza é algo que pode ser reduzido à matemática e à geometria. Deus, ainda tido pelos pensadores da época como perfeito e soberanamente sábio (e, segundo o próprio Galileu, o único que entendeu toda a filosofia), não iria criar nada, segundo eles, que pudesse ser explicado apenas por movimentos aleatórios, cálculos imprecisos ou qualquer outra coisa que fosse o mesmo que nada afirmar. Afinal de contas, alegariam esses pensadores, a natureza está aí, aos olhos de todos, e por esse motivo Deus não a fez de uma forma que equivalesse a nada afirmar. Logo, a natureza está escrita em caracteres matemáticos.

Sobre esse ponto ainda, pode-se perceber nos escritos de Galileu, que ele (assim como Aristóteles) defende que a natureza guarda certa previsibilidade em seus fenômenos: as maçãs vão sempre cair em direção ao chão, coisas muito densas vão sempre afundar na água, um corpo doente vai sempre ficar mais débil que um saudável, e assim se segue. Essa previsibilidade só pode ser obtida por meio de alguma estrutura previsível, pois de alguma outra forma haveria pelo menos alguma coisa que escaparia a essa previsibilidade. As únicas estruturas previsíveis conhecidas pelos pensadores da época são a geometria e a matemática. Logo, a natureza está escrita em caracteres matemáticos e geométricos. O fato de que não pertencem necessariamente à natureza a geometria e a matemática é necessário e desejado, pois algo só pode ser definido em torno de alguma meta-linguagem, e é a matemática e a geometria a meta-linguagem da natureza.

3. Natureza em Descartes: um "Fenômeno" do Cogito?

Renée Descartes foi um importante físico, filosofo e matemático francês, nascido em 1596 e morto em 1650. Filho de advogado e advogado, rompeu com a tradição escolástica da filosofia, propôs uma nova concepção do universo e formulou as bases do pensado científico moderno e as bases da geometria analítica. Famoso pelo axioma "cogito ergo sum", a base do racionalismo científico, ele formula em método de estudo e produção de conhecimento baseado na análise do objeto de estudo. Esse método está descrito em pormenores no "Discurso do Método", embora também seja exposto nas "Meditações". Alguns séculos depois, Edmund Husserl atualiza as "Meditações", criando o método fenomenológico.

Toda sua filosofia foi constituída como uma alternativa viável à escolástica, que ele considera de alguma forma ultrapassada. Em um primeiro momento ele cria um método capaz de produzir conhecimento verdadeiro. Segundo esse método, o problema estudado deve ser decomposto em suas menores partes, cada uma dessas partes deve ser analisada e as análises devem, enfim, serem agrupadas para que se consiga o conhecimento acerca do problema. Como se pode perceber, trata-se de um método analítico que, a bem dizer, foi melhor aproveitado pelas ciências exatas (acostumadas com esse tipo de rigor) do que pelas humanas.

A primeira aplicação proposta pelo próprio Descartes ao seu método foi descobrir a validade de todo conhecimento, das ciências e da fonte de dados deles, a saber, o mundo sensível (isto é, a natureza). Percebe-se aqui facilmente que, embora não trate explicitamente do tema "natureza", nem que seja esse um dos temas principais de sues textos, é necessário a Descartes tratar do assunto, pois de outra forma não poderia haver ciência e, por extensão, conhecimento. Para podermos evidenciar isso, nos será preciso acompanhar os passos de Descartes ao longo de, pelo menos, suas conclusões expostas nas três primeiras Meditações e, após, analisarmos se daí podemos extrair a possibilidade de existência (isto é, a definição) de natureza.

Descartes começa a Primeira Meditação afirmando que em sua formação recebera muitos conhecimentos falsos e, por isso, seria necessário desfazer-se deles. Ele reconhece que é mais fácil atacar os fundamentos desses conhecimentos do que eles próprios, na mesma medida em "que a ruína dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício", conforme ele mesmo afirma no parágrafo 2 da Primeira Meditação. Descartes apercebe-se do primeiro alicerce do edifício de seus conhecimentos: a percepção sensível – "tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos". Mas, como é possível os sentidos fornecerem dados enganosos, tem-se que "é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez".

Paro aqui para discorrer um pouco sobre sentidos e o que eles percebem. Os exemplos clássicos para o chamado uso da percepção sensível são tirados de coisas cotidianas, como folhas, galhos, o sol ou mesmo pessoas e sombras. Parece-me, aqui, que não é possível dissociar, em Descartes, a percepção sensível de um mundo a ser percebido (mesmo que esse mundo, ou melhor dizendo, em consonância com o autor, a percepção desse mundo seja posta em prova). Portanto, se notarmos acertadamente que o que é posto em dúvida é a veracidade dos dados sensíveis e não a existência de um mundo que é percebido, podemos afirmar, sem medo de nos enganarmos aqui, que certamente Descartes não nega a existência do mundo, mas a veracidade dos dados obtidos pelos sentidos.

Mas qual a natureza desse mundo, do qual os sentidos obtiveram e obtém os dados que Descartes pôs a validade em dúvida? Não poderíamos definir outro que não seja a natureza, pelos motivos que serão expostos. Primeiro e o mais fundamental, o próprio Descartes, na Sexta Meditação, considera e entende, por natureza, nada que não seja Deus, ou a ordem que o próprio deu às coisas criadas. O peso dessas afirmações é tal que, se Deus é a própria substância infinita, subentende-se que o mundo está contido na natureza, isto é, Deus, e por isso os sentidos buscam dados na natureza, por extensão. Segundo, por serem as ciências formas de conhecer o mundo e por não haver outra entrada de dados para a razão que não sejam os sentidos, tem-se que para conhecer o mundo precisa-se dos sentidos (é importante notar que o pensamento de Descartes não nega este silogismo, apenas duvida da veracidade dos dados sensíveis). Ora, é válido que a parte do mundo que as ciências naturais visam conhecer são as partes relativas à natureza. Como demonstrou-se acima, a natureza é maior e contém o mundo. Logo, têm-se duas conseqüências: a primeira, todas as ciências são naturais para descartes, e a segunda, os dados sensíveis coletam dados do mundo e este é parte da natureza, logo, os dados sensíveis coletam dados da natureza.

Continuando a argumentação de Descartes, e tendo em vista tudo o que foi concluído até aqui, percebemos que existem coisas das quais é impossível duvidar pelo argumento do erro dos sentidos. Certas coisas simplesmente não têm como ser de outra forma que não a que percebemos. Descartes levanta então a tese do argumento do sonho, segundo o qual os sonhos, por poderem ser tão vívidos quanto o período de vigília, não nos permitem ter válido critério para distinguir o sonho da vigília. Ele admite que os sonhos, por mais falsos que sejam, precisam das coisas reais para fazerem composições falsas.

Descartes continua então afirmando que, em vigília ou sonhando, as verdades matemáticas não têm como serem falsas (e aqui se percebe que também para Descartes a matemática representa algo muito fundamental). Reconhecendo ser impossível negá-las pela razão natural, isto é, pela própria capacidade racional humana, ele supõe que exista uma força, chamada por ele Deus Enganador ou Gênio Maligno, capaz de enganá-lo sempre quando da execução das operações matemáticas, por mais simples que sejam.

Neste ponto, já na Segunda Meditação, Descates percebe que, enquanto agente do ato de dúvida, era necessário à existência de algo que duvide, e essa existência não pode ser duvidável nem pelo argumento do Gênio Maligno – pois que este, para enganar, precisa de algo para ser enganado. Assim ele chega à formulação "eu sou, eu existo", e percebe que esta é válida enquanto ele se mantiver duvidando – o que não é nem minimamente conveniente, se me é permitido um comentário fortuito.

Assim, raciocina Descartes, deve haver alguma forma de garantir a existência desse algo que duvida mesmo enquanto ele estiver duvidando. Recorrendo às idéias de realidade formal e realidade objetiva, Descartes conclui, por fim, a existência de um Deus onipotente e com todos os atributos constantes na Terceira Meditação, parágrafo 22. Com a certeza acerca da existência de Deus, temos finalmente provado a realidade dos dados obtidos por meio dos sentidos, como se pode facilmente verificar na continuação da obra do autor.

Torna-se necessário um pequeno salto rumo à Sexta Meditação, na qual Descartes prova a existência das coisas materiais (isto é, ele prova a existência da natureza, conforme analisado anteriormente). Descartes apela para as certezas matemáticas e demonstra como é necessário que elas sejam concebíveis e imagináveis pelo eu (isto é, aquilo que duvidava nas primeiras Meditações) para que este eu possa conceber outras coisas. A partir desta afirmação, Descartes deriva a certeza acerca da natureza, definindo-a como sendo Deus.

"Mas para que diabos esta introdução toda", poderia alguém indagar neste ponto, "para afirmar isso?". A questão é que em poucas passagens Descartes fala direta e explicitamente de seu conceito ou concepção de natureza, e, a bem dizer, pode por isso mesmo, passar desapercebido para muitos olhos. Mas conforme já analisei, logo na Primeira Meditação podemos antever alguns dos possíveis aspectos desse conceito para Descartes, a recapitular, a constatação de um mundo externo, percebível pelos sentidos e sobre o qual é o conhecimento.

Conforme nos aprofundamos nos argumentos de Descartes, observamos o profundo caráter solissista das Meditações, e talvez isso não nos permita ver como Descartes entende o mundo natural que o cerca. Com efeito, pode-se perceber as características abaixo para o conceito de natureza em Descartes:

- Natureza compreende todo o mundo externo ao eu e percebível pelos sentidos;

- Natureza é algo que existe, independentemente de um ser para perceber sua existência;

- Natureza é composta por elementos tais que, quando decompostos, os elementos mais simples a que se chegam são as verdades matemáticas.

Sobre o primeiro ponto não há mais nada a se dizer além do que já foi exposto ao longo desta segunda parte do trabalho. Acrescento, à título de perfumaria, que a concepção de natureza como sendo ao mesmo tempo Deus e todo o mundo percebível pelos sentidos é uma constante em todas as Meditações, e serviu de inspiração para o racionalismo cientificista pós-Descartes.

Sobre o segundo ponto, o argumento mais forte para defendê-lo é justamente que Descartes jamais duvidou da existência de um mundo externo ao qual se referiam os sentidos, mas sim da validade dos dados obtidos por ele. A questão do Descartes jamais foi, ao meu entender, definir em sua metafísica (como ele via as suas Meditações) questões de natureza puramente física (isto é, a existência desse mundo externo). A preocupação acerca do mundo externo ao eu dizia respeito à possibilidade de se conhecê-lo verdadeiramente. Pode bem ser mesmo que não exista um mundo material, ao qual os sentidos façam referencia, ou que sejamos "cérebros em uma cuba, conectados por fios a computadores", como a metáfora de H. Putnam sugere, mas para as Meditações de Descartes isso pouco importa. O que importa é que os dados obtidos pelos sentidos (a via de entrada dos dados para elementos da razão) sejam verdadeiros, isto é, que façam a exata correspondência entre sensação e coisa sentida – não interessando, pelo o que eu posso perceber, se a coisa sentida é da maneira sentida, ou mesmo se ela é real.

Ainda sobre o segundo ponto, desta forma podemos perceber como que, para Descartes, indifere, no âmbito de suas Meditações, se existe para perceber o mundo natural alguém capaz de fazê-lo. Caso discordemos da argumentação exposta no parágrafo anterior, recapitulemos como a natureza é definida ("não entendo outra coisa agora senão Deus") e a importância de Deus na estrutura das argumentações expostas nas Meditações. Com efeito, percebemos, de maneira contundente nos valendo do principio da transitividade da igualdade (isto é, se a=b e b=c, então a=c), que Deus e natureza são iguais, e portanto natureza e validade da natureza do eu são iguais. Isso nos leva a concluir que a natureza independe da existência de algo para percebê-la para existir.

Sobre o terceiro ponto, pode-se perceber logo na Primeira Meditação, quando ele percebe que em momento algum a dúvida racional poderia levá-lo à dúvida neste ponto. Mais ainda, ele percebe como qualidade da natureza corpórea (isto é natural, conforme o que já foi visto até aqui) a extensão, a forma, a quantidade, a grandeza, o numero, o lugar e o tempo em que estão, e outras coisas semelhantes.

Todas essas propriedades enunciadas por Descartes são, como ele próprio reconhece, propriedades matemáticas, e são essas propriedades que a dúvida racional não atinge duvidar. Foi para elas que o argumento do Gênio Maligno, aquele que faz errar sempre no tocante às certezas matemáticas, foi tecido. Assim, percebe-se que elas aparecem tendo uma importância tal para Descartes que elas constituem o elemento mais simples de todo o conhecimento, pois delas não se pode duvidar racionalmente. O apelo ao argumento do Gênio Maligno apenas confirma isso, visto que se fez necessário apelar-se para um recurso metafísico e hipotético para se estabelecer a dúvida sobre as certezas matemáticas.

Sobre o terceiro ponto, afirma-se ainda que para o conhecimento é impossível ter ciência de um mundo externo antes que se consiga imaginar e conceber as coisas mais simples, isto é, as verdades matemáticas, conforme enunciado na Sexta Meditação. Assim, pode-se afirmar com toda a certeza que a geometria e a matemática, certezas mais elementares e evidentes possível, são os elementos mais simples de toda a natureza.

Mas, por que essa fixação nas certezas matemáticas a tal ponto de querer provar a existência de Deus com tal rigor? Lembremo-nos que, neste mesmo texto, foi proposta essa pergunta acerca da natureza para Galileu. E a conclusão a que chegamos foi que a matemática, por ser uma espécie de metalinguagem da natureza, é que deveria ser usada para explicá-la.

Porém, essa conclusão não se aplica para Descartes, pois este entende que as certezas matemáticas como sendo os mais simples elementos constituitivos da natureza. A questão no momento é saber por que Descartes usa a matemática para validar suas conclusões acerca da natureza. E para aqueles que leram com o mínimo de atenção o Discurso do Método torna-se evidente o motivo: para a produção de conhecimento segundo o método cartesiano, é necessário decompor o problema até encontrar-se as menores partes dele, analisá-las e compor uma síntese dessas análises: sendo as verdades matemáticas os elementos mais simples da natureza, é natural que Descartes as supervalorizasse.

Assim, podemos claramente responder à pergunta proposta no título desta parte do escrito. Não é a natureza um fenômeno do cogito, mas, antes, o cogito um fenômeno da natureza.

4. Conclusão

Pode-se facilmente perceber que, para ambos os autores, a natureza pode, de alguma forma, ser percebida pelos sentidos e explicada pelos conhecimentos matemáticos. Desta forma, a certeza da existência e da padronização podem ser obtidas, o que garante que os conhecimentos daí obtidos tenham ampla validade.

No entanto, Galileu e Descartes diferem de uma maneira muito radical sobre uma forma como o conhecimento poderia se dar. Para Galileu, conhecer pressupõe experimentar, o que supõe a existência factual de uma coisa a ser experimentada. Já para Descartes, o conhecimento se dá verdadeiro quando entre percepção e coisa percebida existir uma correspondência exata, independente desta existir ou não. Trata-se dos pontos de vista, respectivamente, do empirismo e do racionalismo, duas florescentes (no período) escolas acerca da epistemologia.

Concluindo, para Galileu, natureza é algo existente, perceptível pelos sentidos, reduzível à matemática e que qualquer reconhecimento sobre ela só poderia vir do campo da experimentação. Já para Descartes, a natureza compreende todo o mundo externo e perceptível pelos sentidos; cujos elementos mais simples obtidos pela análise são as verdades matemáticas, e cuja existência de outras coisas para percebê-la, e, ainda, validade do cogito.

Um comentário:

Maria disse...

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