Manual de Instruções

Caros leitores, após muito tempo decidi quebrar alguns de meus votos de silêncio. Um deles inclui voltar a escrever por aqui. O outro, falar de política. Tarja Preta versão 3.0, divirtam-se!
Caso você encontre em algum dos meus textos algo interessante e queira compartilhar com seus amigos ou em seu site, revista, jornal, etc., sinta-se à vontade. Basta indicar a fonte e recomendar a leitura do blog, e todos os textos que estão aqui estarão ao seu dispor.

P. S.: decifra-me ou devoro-te!

terça-feira, 31 de julho de 2007

Quatro Poemas

Ex Nihilo

Morri - morri sem nunca ter estado vivo
Sangrei toda a alma em essência natimorta
Sou aquele que é sem nunca ter existido
Cruzei os umbrais sem ter aberto uma porta

Deixei para vós reais ilusões e sólidas aparências
O legado eterno dos homens para sempre mortais
Deixo como herança a dúvida: "tereis vivência"?
Mas não me perguntai, já que os mortos não falam!

Como sois tolos em acreditar possuírdes ser
E que algo além de ilusão persiste em vossos olhos
Embaciados por coisas que existem como sonhos

Oh, mundo oco, cheio de coisas que não podem ser
Pudesse eu o esmagaria com o martelo de Hefestos!
Mas estou morto, cansado, vivo e muito velho...

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Umbra

De novo sinto tua sombra em minhas coisas...
Aquele traço teu, tão peculiar ao meu olfato
E que marcou fundo desde nossa primeira vez
Eu o sinto aqui, nas paredes de meu quarto

Posso ver teus olhos, pérolas faiscando
Olhando para mim em doce súplica profana
Divinamente esquecidos entre meus joelhos
Enquanto nossas almas assim se tornam uma

Minha pele ainda é marcada pelo seu perfume
Cada poro do meu corpo exala tua doce essência
E minha vida se alimenta do teu puro lume

Mas o que eu sinto é apenas tua sombra
Vago resquício de tua forte luminiscência
A trazer alegria para minha triste umbra

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Confissões (Amor Iludido)

O vazio de minha essência quis eu preencher
Da pior maneira que um homem poderia escolher:
Quis preenchê-lo com o amor que por ti sinto
Eis que sem perceber criei para mim cruel labirinto

Sei que tu não me amas tanto quanto eu te amo
E por "amor" não chamas a mesma coisa que eu chamo
Essa é a triste vida de um cancioneiro da alma:
Por amor viver sem paz e muito longe da calma

Mas não te obrigues a me amar como eu amo a ti
Pois não quero forçar-te a tamanho sacrifício...
Deixa-me só a amar do que forçar o amor a ti

Deixa-me chorar por um amor não correspondido
Mas não me deixa viver sem ti, meu benefício
Preferível a morrer só é viver um amor iludido

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Soneto à Imperatriz

Salve Rainha de Minhas Primaveras
Doce é a tua voz que me alcança ao largo
Teus cabelos com grinaldas entrelaçadas
Trazem cor ao meu sombrio mundo amargo

Vem a mim, tu que é a Maior das Deusas
Flutuando na gaze destes primaveris salões
De árvores feito e enfeitado por guirlandas
Contigo trazes tua pura luz para estes portões

Ajoelho em tua frente, oh grande Deméter
E junta-te a mim no Sagrado Trabalho
Sacerdote e Sacerdotiza juntos no Éter

Cinge minha fronte com a Coroa Dourada
Pois sem esse teu gesto eu de nada valho
Sagra-me teu Imperador, oh Imperatriz amada

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Como o Universo foi criado - por Chuck Norris

Queridos amigos e inexistentes leitores deste microespaço virtual no manicômio da vida, eu tenho um furo jornalístico aqui, fresquinho da silva! Eu consegui uma entrevista fantástica com Chuck Norris, e nela é revelado um dos maiores segredos de todos os tempos: como o Universo foi criado. Acompanhem:

Tarja Preta: grande mestre Chuck Norris, como o Universo foi criado?

Chuck Norris: bem, um certo dia eu estava passeando na minha casa. Tipo, estava tudo escuro, porque as luzes tiveram a audácia de queimarem todas.

Tarja Preta: mas que audácia, grande mestre Chuck Norris! Mas o que eu senhor fez?

Chuck Norris: nada, porque eu estava com uma preguiça do caralho. Então eu andei e andei pela casa, e de repente o repolho com angu e toucinho que eu comi no café da manhã começou a fazer efeito.

Tarja Preta: oh, mestre! Mas o que o senhor fez então?

Chuck Norris: bem, não conseguindo mais me segurar, eu soltei um grande pum, e as lâmpadas se acenderam de medo. E assim nasceu o Universo.

Tarja Preta: mas porque os cientistas chamam a criação do Universo de Big Bang?

Chuck Norris: olha só, chamar isso de grande pum é feio pra caralho, e por isso eu resolvi chamar essa porra de big bang. Sabe como é, tá em inglês é científico - porque eu quis assim!

Tarja Preta: desculpe-me incomodar o grande mestre. Que possa seu exemplo iluminar minha insignificante vida.

Chuck Norris: sai pra lá, inseto! [roundhouse kick na cara do entrevistador]

A CONCEPÇÃO DE NATUREZA PARA RENÉE DESCARTES E GALILEU GALILEI

A CONCEPÇÃO DE NATUREZA PARA RENÉE DESCARTES E GALILEU GALILEI

Por Luís Fernando Carvalho Cavalheiro

Nota: mais uma vez, eu não me preocupei em fazer as devidas referências bibliográficas. No entanto, para os interessados neste tipo de informação posso dizer que só me vali de dois livros para compor este texto: O Ensaiador, de Galileu, e as Meditações de Descartes. Os dois textos podem ser encontrados na coleção Os Pensadores, da Editora Abril – eu fiz uso da edição de capa dura e azul, da década de 70.

1. Introdução

O objetivo deste trabalho é analisar a concepção de natureza para dois autores importantes para a história do pensamento ocidental: Renée Descartes e Galileu Galilei. O período histórico em que esses autores escreveram foi a Idade Moderna, logo após o término da Idade Medieval; Galileu inclusive vivenciou o chamado Renascimento (ou Renascença, ou ainda Risorgimento) na península itálica.

A obra de Galileu a ser usada como referencia será "O Ensaiador", que consta no volume XII da coleção "Os Pensadores". Neste escrito (elaborado em forma de uma carta ao Monsenhor Cesarini), o autor analisa as objeções de Lotário Sarsi ao escrito de Mário Guiducci. No desenvolver dessa análise aprendemos uma concepção de natureza que é típica do momento e local históricos em que Galileu viveu, que é, a bem dizer, a concepção "padrão" de natureza para os autores do período, como bem o disse Galileu: "A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto".

Em um primeiro momento pode parecer estranho a inclusão de Descartes neste trabalho, já que a natureza não foi um de seus assuntos de primário interesse na filosofia, e tampouco é intenção minha afirmar semelhante coisa. Mas, ao nos lembrarmos bem das "Meditações", poderemos intuir a concepção que Descartes tinha da natureza; explicitamente, conforme o parágrafo 22 da Sexta Meditação, "Pois, por natureza, considerada em geral, não entendo agora outra coisa senão o próprio Deus, ou a ordem e a disposição que Deus estabeleceu nas coisas criadas". Essa afirmação nos faz buscar, desde a Primeira até a Terceira Meditação, os argumentos usados pelo autor para justificar a existência de Deus – e, indiretamente, como se deve conceber a natureza.

Por fim haverá uma pequena conclusão, em que se tentará levantar alguns pontos semelhantes a alguns pontos dissonantes das duas concepções da natureza. De maneira concisa, serão apresentadas, também, uma pequena conceituação formal de cada uma dessas concepções.

2. Natureza para Galileu: Deus, o Grande Geômetra

Galileu Galilei foi um importante filósofo, matemático e astrônomo italiano, nascido em 1564 e morto em 1642. Suas observações no campo da astronomia e seus estudos matemáticos levaram-no a concluir, entre outras coisas, que a natureza é um grande manual de geometria escrito por Deus e acessível apenas para quem conceber e compreender essa linguagem. Seus estudos em astronomia o levaram a corroborar as teorias heliocêntricas de Copérnico, o que levou a Igreja a ameaçá-lo com excomunhão se não negasse. Ele passou os últimos anos de sua vida em prisão domiciliar. Galileu viveu durante o Renascimento Italiano, movimento cultural que marcou, com todas as pompas, o rompimento com a Idade Média e, nessa época, a cultura clássica estava inspirando novamente os filósofos e cientistas em geral. Além disso, o pensador renascentista foi tomado pelo espírito de experimentação: era preciso comprovar as teorias, era preciso experimentar teorias para formular novas.

O redescobrimento dos clássicos levou os pensadores renascentistas a valorizarem, tal como fez Platão, Aristóteles, Euclides e outros, sobremaneira a geometria enquanto método de pesquisa; essa importância aparece claramente nos dizeres do pórtico da Academia de Platão: "Que não se permita entrar aqui aqueles que não sejam versados em geometria". Foi uma marca indelével dos filósofos do período moderno justamente os estudos sobre matemática, geometria e álgebra. Uma prova disso que até hoje muitos modelos matemáticos propostos nessa época ainda são válidos, desde a geometria analítica de Descartes até os modelos matemáticos propostos por Leibiniz e aproveitados por Alan Turing para a formulação dos esquemas do computador digital.

Mas voltando a Galileu, em "O Ensaiador" percebe-se facilmente os aspectos que a natureza deva possuir para ele:

- Natureza é algo existente, percebível pelos sentidos;

- Natureza é algo que, para ser conhecido, precisa ser experimentado;

- Natureza é algo que pode ser reduzido à matemática e à geometria.

Sobre o primeiro ponto, afirma-se que, se a natureza não fosse considerada existente por Galileu, não se torna possível para ele estudá-la de maneira convincente e aprofundada. Podemos perceber que, pelo menos no campo da astronomia, Galileu dedica uma seriedade aos seus estudos que torna-se impossível crer que, para ele, não exista os objetos de seu estudo. Assim, podemos crer que, para Galileu, a natureza é algo existente.

Ainda sobre a existência da natureza, podemos afirmar que Galileu nunca contesta, nesse escrito, a existência dos astros e particularmente do cometa que ele podia divisar com sua luneta. Sobre o cometa, paira a dúvida que ele seja real ou uma mera aparência – mas em momento algum nega-se a existência do fenômeno. Ele observa os astros, e sobre ele faz interessantes análises descritivas, o que, com toda certeza, faz pressupor alguma existência – seja ela real ou aparente.

Ainda sobre a existência, devemos perceber que o universo (ou mundo translunar, na definição de Aristóteles) não é algo imutável e imóvel em sua concepção, e por conseguinte não é perfeito. Esse é um ponto de ruptura entre a filosofia natural dessa época e a filosofia natural de Aristóteles. A título de exemplo, tomemos o caso da Lua: para Aristóteles, ela seria lisa e perfeita, imutável como todos os outros corpos celestiais; para Galileu, que a observou em sua luneta e registrou essas observações no livro "Nunzio Sidereo", a Lua "não é lisa nem esférica (...) é feia, esburacada, coberta de montanhas e sulcada por vales profundos". O universo, por ter muitos movimentos (constatados alguns por Galileu), não pode ser perfeito conforme Aristóteles o definia – pois, para este, a perfeição pressupõe a imobilidade.

Da existência da natureza deriva-se facilmente que esta pode ser observada ou de algumas outras maneiras percebível pelos sentidos. É quase unânime a opinião de que os sentidos captam impressões do ambiente que lhes cercam. Essa definição supõe a existência de um meio externo para impressionar os sentidos. Para Galileu, esse meio externo existe e é a natureza, como podemos perceber pelo texto dele.

Ainda sobre a questão da percepção sensível, por inúmeras vezes Galileu usa, em "O Ensaiador", comparações sensíveis para determinar a validade ou a falsidade de algumas objeções de Lotário Sarsi (como exemplo cito o caso da amplificação da luneta, que, pelos argumentos de Sarsi, conforme Galileu coloca, conclui-se que a lua se encontra a dez milhas de distancia e o Sol, a quinze). Para ele valer-se desses argumentos, é necessário a existência de algum local válido para que ele possa obter tais argumentos. Esses argumentos são obtidos, por meio da percepção sensível de algum meio externo ao Galileu. Conforme percebe-se do próprio texto, esse meio externo não é nada mais, nada menos que a própria natureza.

Mas a simples existência da natureza, ou a faculdade desta em ser percebida pelos sentidos, não é suficiente para Galileu; com efeito, ele deposita particular crença forte na máxima de Protágoras: "O homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são". Assim, não basta saber que existe, é preciso conhecer.

Conhecer, para Galileu, não é um simples exercício da razão (ou, como se diária nos termos de hoje, não é uma prática de gabinete). Para conhecer alguma coisa, é preciso experimentar, observar, estudar. Não é célebre, entre os minimamente versados em história das ciências, o experimento realizado na Torre de Pisa, a saber, soltou-se uma bola de chumbo e uma pedra do alto da torre, e ambas chegaram ao mesmo tempo no chão? Para Galileu não era diferente: ele observava as estrelas, os cometas e os outros astros, ele fazia cálculos e cálculos sobre a geometria, ele observava e estudava o que porventura estivesse em um dos seus campos de interesse.

Ainda sobre esse ponto, pode-se afirmar que, a título de prova para as afirmações acima, pode-se citar inúmeras passagens do "Ensaiador", entre as quais os relatos sobre os cansaços e fadigas derivados da observação exaustiva das luas de Júpiter; os relatos sobre as observações do cometa; e os relatos sobre como Galileu construiu sua luneta baseando-se nos comentários que ouvira. Nelas pode-se perceber facilmente que para ele não eram as ciências exercícios de gabinete, mas havia a necessidade da comprovação via experimentação.

Ainda sobre esse ponto, pode-se afirmar que a experimentação de Galileu, pelo menos no concernente às ciências matemáticas e astronômicas, levaram-no a perceber certas propriedades das coisas, a saber, forma, numero, extensão, etc, que são, a priori, propriedades matemáticas ou geométricas. Para ilustrar isso cito a passagem em que explica o movimento do cometa, e argumenta que o mesmo deve ter se dado em uma circunferência máxima; as contraprovas geométricas que ele oferece ao monsenhor Cesarini propor a Lotário Sarsi, ou a análise da teoria de Tycho Brahe. Percebe-se facilmente a importância dada por Galileu à geometria, principalmente. Mas caberia facilmente aqui a pergunta: "Tudo bem, ele atribuiu importância à geometria. Mas por quê?"

Para isso precisamos notar antes a infalibilidade dada na época à matemática e à geometria. É desse período a expressão "Tão certo quanto dois mais três formarão sempre o numero cinco", cunhada por Descartes na Primeira Meditação. Segundo ainda Descartes: "(...) mas que a Aritmética e a Geometria, e as outras ciências desta natureza, que não tratam senão das coisas muito simples e gerais, sem cuidarem muito em se elas existem ou não na natureza, contém algo de certo e indubitável".

Parece-me que ponto chave desta frase de Descartes é justamente "sem cuidarem muito em se elas existem ou não na natureza". É uma questão até hoje aceita como verdadeira que uma coisa não se pode autodefinir sem cair numa circularidade ou regressão ao infinito. Cito aqui, a guisa de exemplo, uma das objeções feitas a qualquer teoria contratualista, a saber: "O contrato para ser obedecido, precisaria então de algum dispositivo pré-contrato que garantisse essa obediência, e esse dispositivo precisaria assim de algum outro anterior a ele, e assim ad infinituum", conforme afirma Peter Stemmer em seu artigo "Contratualismo Moral".

Assim sendo, nenhum elemento poderia ser usado para definir a natureza se estver inserido nela. É como usar de usar um contrato para justificar um contratualismo, ou da matemática para justificar a si mesma: circular. Mas a geometria não é entendida como pertencente à natureza, e assim pode ser usada para defini-la.

Ainda há um outro ponto não considerado aqui, que reza acerca da previsibilidade. Um conhecimento só tem utilidade para o homem se ele puder ser previsível, como podemos compreender do próprio Galileu quando este afirma que usar de um movimento irregular para explicar o movimento do cometa é a mesma coisa que nada afirmar. A matemática e a geometria são tidas, nessa época, como previsíveis – dois mais três sempre será cinco, um triângulo tem sempre três lados, e assim segue.

Torna-se quase auto-evidente o terceiro ponto, a saber, a natureza é algo que pode ser reduzido à matemática e à geometria. Deus, ainda tido pelos pensadores da época como perfeito e soberanamente sábio (e, segundo o próprio Galileu, o único que entendeu toda a filosofia), não iria criar nada, segundo eles, que pudesse ser explicado apenas por movimentos aleatórios, cálculos imprecisos ou qualquer outra coisa que fosse o mesmo que nada afirmar. Afinal de contas, alegariam esses pensadores, a natureza está aí, aos olhos de todos, e por esse motivo Deus não a fez de uma forma que equivalesse a nada afirmar. Logo, a natureza está escrita em caracteres matemáticos.

Sobre esse ponto ainda, pode-se perceber nos escritos de Galileu, que ele (assim como Aristóteles) defende que a natureza guarda certa previsibilidade em seus fenômenos: as maçãs vão sempre cair em direção ao chão, coisas muito densas vão sempre afundar na água, um corpo doente vai sempre ficar mais débil que um saudável, e assim se segue. Essa previsibilidade só pode ser obtida por meio de alguma estrutura previsível, pois de alguma outra forma haveria pelo menos alguma coisa que escaparia a essa previsibilidade. As únicas estruturas previsíveis conhecidas pelos pensadores da época são a geometria e a matemática. Logo, a natureza está escrita em caracteres matemáticos e geométricos. O fato de que não pertencem necessariamente à natureza a geometria e a matemática é necessário e desejado, pois algo só pode ser definido em torno de alguma meta-linguagem, e é a matemática e a geometria a meta-linguagem da natureza.

3. Natureza em Descartes: um "Fenômeno" do Cogito?

Renée Descartes foi um importante físico, filosofo e matemático francês, nascido em 1596 e morto em 1650. Filho de advogado e advogado, rompeu com a tradição escolástica da filosofia, propôs uma nova concepção do universo e formulou as bases do pensado científico moderno e as bases da geometria analítica. Famoso pelo axioma "cogito ergo sum", a base do racionalismo científico, ele formula em método de estudo e produção de conhecimento baseado na análise do objeto de estudo. Esse método está descrito em pormenores no "Discurso do Método", embora também seja exposto nas "Meditações". Alguns séculos depois, Edmund Husserl atualiza as "Meditações", criando o método fenomenológico.

Toda sua filosofia foi constituída como uma alternativa viável à escolástica, que ele considera de alguma forma ultrapassada. Em um primeiro momento ele cria um método capaz de produzir conhecimento verdadeiro. Segundo esse método, o problema estudado deve ser decomposto em suas menores partes, cada uma dessas partes deve ser analisada e as análises devem, enfim, serem agrupadas para que se consiga o conhecimento acerca do problema. Como se pode perceber, trata-se de um método analítico que, a bem dizer, foi melhor aproveitado pelas ciências exatas (acostumadas com esse tipo de rigor) do que pelas humanas.

A primeira aplicação proposta pelo próprio Descartes ao seu método foi descobrir a validade de todo conhecimento, das ciências e da fonte de dados deles, a saber, o mundo sensível (isto é, a natureza). Percebe-se aqui facilmente que, embora não trate explicitamente do tema "natureza", nem que seja esse um dos temas principais de sues textos, é necessário a Descartes tratar do assunto, pois de outra forma não poderia haver ciência e, por extensão, conhecimento. Para podermos evidenciar isso, nos será preciso acompanhar os passos de Descartes ao longo de, pelo menos, suas conclusões expostas nas três primeiras Meditações e, após, analisarmos se daí podemos extrair a possibilidade de existência (isto é, a definição) de natureza.

Descartes começa a Primeira Meditação afirmando que em sua formação recebera muitos conhecimentos falsos e, por isso, seria necessário desfazer-se deles. Ele reconhece que é mais fácil atacar os fundamentos desses conhecimentos do que eles próprios, na mesma medida em "que a ruína dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício", conforme ele mesmo afirma no parágrafo 2 da Primeira Meditação. Descartes apercebe-se do primeiro alicerce do edifício de seus conhecimentos: a percepção sensível – "tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro, aprendi-o dos sentidos ou pelos sentidos". Mas, como é possível os sentidos fornecerem dados enganosos, tem-se que "é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez".

Paro aqui para discorrer um pouco sobre sentidos e o que eles percebem. Os exemplos clássicos para o chamado uso da percepção sensível são tirados de coisas cotidianas, como folhas, galhos, o sol ou mesmo pessoas e sombras. Parece-me, aqui, que não é possível dissociar, em Descartes, a percepção sensível de um mundo a ser percebido (mesmo que esse mundo, ou melhor dizendo, em consonância com o autor, a percepção desse mundo seja posta em prova). Portanto, se notarmos acertadamente que o que é posto em dúvida é a veracidade dos dados sensíveis e não a existência de um mundo que é percebido, podemos afirmar, sem medo de nos enganarmos aqui, que certamente Descartes não nega a existência do mundo, mas a veracidade dos dados obtidos pelos sentidos.

Mas qual a natureza desse mundo, do qual os sentidos obtiveram e obtém os dados que Descartes pôs a validade em dúvida? Não poderíamos definir outro que não seja a natureza, pelos motivos que serão expostos. Primeiro e o mais fundamental, o próprio Descartes, na Sexta Meditação, considera e entende, por natureza, nada que não seja Deus, ou a ordem que o próprio deu às coisas criadas. O peso dessas afirmações é tal que, se Deus é a própria substância infinita, subentende-se que o mundo está contido na natureza, isto é, Deus, e por isso os sentidos buscam dados na natureza, por extensão. Segundo, por serem as ciências formas de conhecer o mundo e por não haver outra entrada de dados para a razão que não sejam os sentidos, tem-se que para conhecer o mundo precisa-se dos sentidos (é importante notar que o pensamento de Descartes não nega este silogismo, apenas duvida da veracidade dos dados sensíveis). Ora, é válido que a parte do mundo que as ciências naturais visam conhecer são as partes relativas à natureza. Como demonstrou-se acima, a natureza é maior e contém o mundo. Logo, têm-se duas conseqüências: a primeira, todas as ciências são naturais para descartes, e a segunda, os dados sensíveis coletam dados do mundo e este é parte da natureza, logo, os dados sensíveis coletam dados da natureza.

Continuando a argumentação de Descartes, e tendo em vista tudo o que foi concluído até aqui, percebemos que existem coisas das quais é impossível duvidar pelo argumento do erro dos sentidos. Certas coisas simplesmente não têm como ser de outra forma que não a que percebemos. Descartes levanta então a tese do argumento do sonho, segundo o qual os sonhos, por poderem ser tão vívidos quanto o período de vigília, não nos permitem ter válido critério para distinguir o sonho da vigília. Ele admite que os sonhos, por mais falsos que sejam, precisam das coisas reais para fazerem composições falsas.

Descartes continua então afirmando que, em vigília ou sonhando, as verdades matemáticas não têm como serem falsas (e aqui se percebe que também para Descartes a matemática representa algo muito fundamental). Reconhecendo ser impossível negá-las pela razão natural, isto é, pela própria capacidade racional humana, ele supõe que exista uma força, chamada por ele Deus Enganador ou Gênio Maligno, capaz de enganá-lo sempre quando da execução das operações matemáticas, por mais simples que sejam.

Neste ponto, já na Segunda Meditação, Descates percebe que, enquanto agente do ato de dúvida, era necessário à existência de algo que duvide, e essa existência não pode ser duvidável nem pelo argumento do Gênio Maligno – pois que este, para enganar, precisa de algo para ser enganado. Assim ele chega à formulação "eu sou, eu existo", e percebe que esta é válida enquanto ele se mantiver duvidando – o que não é nem minimamente conveniente, se me é permitido um comentário fortuito.

Assim, raciocina Descartes, deve haver alguma forma de garantir a existência desse algo que duvida mesmo enquanto ele estiver duvidando. Recorrendo às idéias de realidade formal e realidade objetiva, Descartes conclui, por fim, a existência de um Deus onipotente e com todos os atributos constantes na Terceira Meditação, parágrafo 22. Com a certeza acerca da existência de Deus, temos finalmente provado a realidade dos dados obtidos por meio dos sentidos, como se pode facilmente verificar na continuação da obra do autor.

Torna-se necessário um pequeno salto rumo à Sexta Meditação, na qual Descartes prova a existência das coisas materiais (isto é, ele prova a existência da natureza, conforme analisado anteriormente). Descartes apela para as certezas matemáticas e demonstra como é necessário que elas sejam concebíveis e imagináveis pelo eu (isto é, aquilo que duvidava nas primeiras Meditações) para que este eu possa conceber outras coisas. A partir desta afirmação, Descartes deriva a certeza acerca da natureza, definindo-a como sendo Deus.

"Mas para que diabos esta introdução toda", poderia alguém indagar neste ponto, "para afirmar isso?". A questão é que em poucas passagens Descartes fala direta e explicitamente de seu conceito ou concepção de natureza, e, a bem dizer, pode por isso mesmo, passar desapercebido para muitos olhos. Mas conforme já analisei, logo na Primeira Meditação podemos antever alguns dos possíveis aspectos desse conceito para Descartes, a recapitular, a constatação de um mundo externo, percebível pelos sentidos e sobre o qual é o conhecimento.

Conforme nos aprofundamos nos argumentos de Descartes, observamos o profundo caráter solissista das Meditações, e talvez isso não nos permita ver como Descartes entende o mundo natural que o cerca. Com efeito, pode-se perceber as características abaixo para o conceito de natureza em Descartes:

- Natureza compreende todo o mundo externo ao eu e percebível pelos sentidos;

- Natureza é algo que existe, independentemente de um ser para perceber sua existência;

- Natureza é composta por elementos tais que, quando decompostos, os elementos mais simples a que se chegam são as verdades matemáticas.

Sobre o primeiro ponto não há mais nada a se dizer além do que já foi exposto ao longo desta segunda parte do trabalho. Acrescento, à título de perfumaria, que a concepção de natureza como sendo ao mesmo tempo Deus e todo o mundo percebível pelos sentidos é uma constante em todas as Meditações, e serviu de inspiração para o racionalismo cientificista pós-Descartes.

Sobre o segundo ponto, o argumento mais forte para defendê-lo é justamente que Descartes jamais duvidou da existência de um mundo externo ao qual se referiam os sentidos, mas sim da validade dos dados obtidos por ele. A questão do Descartes jamais foi, ao meu entender, definir em sua metafísica (como ele via as suas Meditações) questões de natureza puramente física (isto é, a existência desse mundo externo). A preocupação acerca do mundo externo ao eu dizia respeito à possibilidade de se conhecê-lo verdadeiramente. Pode bem ser mesmo que não exista um mundo material, ao qual os sentidos façam referencia, ou que sejamos "cérebros em uma cuba, conectados por fios a computadores", como a metáfora de H. Putnam sugere, mas para as Meditações de Descartes isso pouco importa. O que importa é que os dados obtidos pelos sentidos (a via de entrada dos dados para elementos da razão) sejam verdadeiros, isto é, que façam a exata correspondência entre sensação e coisa sentida – não interessando, pelo o que eu posso perceber, se a coisa sentida é da maneira sentida, ou mesmo se ela é real.

Ainda sobre o segundo ponto, desta forma podemos perceber como que, para Descartes, indifere, no âmbito de suas Meditações, se existe para perceber o mundo natural alguém capaz de fazê-lo. Caso discordemos da argumentação exposta no parágrafo anterior, recapitulemos como a natureza é definida ("não entendo outra coisa agora senão Deus") e a importância de Deus na estrutura das argumentações expostas nas Meditações. Com efeito, percebemos, de maneira contundente nos valendo do principio da transitividade da igualdade (isto é, se a=b e b=c, então a=c), que Deus e natureza são iguais, e portanto natureza e validade da natureza do eu são iguais. Isso nos leva a concluir que a natureza independe da existência de algo para percebê-la para existir.

Sobre o terceiro ponto, pode-se perceber logo na Primeira Meditação, quando ele percebe que em momento algum a dúvida racional poderia levá-lo à dúvida neste ponto. Mais ainda, ele percebe como qualidade da natureza corpórea (isto é natural, conforme o que já foi visto até aqui) a extensão, a forma, a quantidade, a grandeza, o numero, o lugar e o tempo em que estão, e outras coisas semelhantes.

Todas essas propriedades enunciadas por Descartes são, como ele próprio reconhece, propriedades matemáticas, e são essas propriedades que a dúvida racional não atinge duvidar. Foi para elas que o argumento do Gênio Maligno, aquele que faz errar sempre no tocante às certezas matemáticas, foi tecido. Assim, percebe-se que elas aparecem tendo uma importância tal para Descartes que elas constituem o elemento mais simples de todo o conhecimento, pois delas não se pode duvidar racionalmente. O apelo ao argumento do Gênio Maligno apenas confirma isso, visto que se fez necessário apelar-se para um recurso metafísico e hipotético para se estabelecer a dúvida sobre as certezas matemáticas.

Sobre o terceiro ponto, afirma-se ainda que para o conhecimento é impossível ter ciência de um mundo externo antes que se consiga imaginar e conceber as coisas mais simples, isto é, as verdades matemáticas, conforme enunciado na Sexta Meditação. Assim, pode-se afirmar com toda a certeza que a geometria e a matemática, certezas mais elementares e evidentes possível, são os elementos mais simples de toda a natureza.

Mas, por que essa fixação nas certezas matemáticas a tal ponto de querer provar a existência de Deus com tal rigor? Lembremo-nos que, neste mesmo texto, foi proposta essa pergunta acerca da natureza para Galileu. E a conclusão a que chegamos foi que a matemática, por ser uma espécie de metalinguagem da natureza, é que deveria ser usada para explicá-la.

Porém, essa conclusão não se aplica para Descartes, pois este entende que as certezas matemáticas como sendo os mais simples elementos constituitivos da natureza. A questão no momento é saber por que Descartes usa a matemática para validar suas conclusões acerca da natureza. E para aqueles que leram com o mínimo de atenção o Discurso do Método torna-se evidente o motivo: para a produção de conhecimento segundo o método cartesiano, é necessário decompor o problema até encontrar-se as menores partes dele, analisá-las e compor uma síntese dessas análises: sendo as verdades matemáticas os elementos mais simples da natureza, é natural que Descartes as supervalorizasse.

Assim, podemos claramente responder à pergunta proposta no título desta parte do escrito. Não é a natureza um fenômeno do cogito, mas, antes, o cogito um fenômeno da natureza.

4. Conclusão

Pode-se facilmente perceber que, para ambos os autores, a natureza pode, de alguma forma, ser percebida pelos sentidos e explicada pelos conhecimentos matemáticos. Desta forma, a certeza da existência e da padronização podem ser obtidas, o que garante que os conhecimentos daí obtidos tenham ampla validade.

No entanto, Galileu e Descartes diferem de uma maneira muito radical sobre uma forma como o conhecimento poderia se dar. Para Galileu, conhecer pressupõe experimentar, o que supõe a existência factual de uma coisa a ser experimentada. Já para Descartes, o conhecimento se dá verdadeiro quando entre percepção e coisa percebida existir uma correspondência exata, independente desta existir ou não. Trata-se dos pontos de vista, respectivamente, do empirismo e do racionalismo, duas florescentes (no período) escolas acerca da epistemologia.

Concluindo, para Galileu, natureza é algo existente, perceptível pelos sentidos, reduzível à matemática e que qualquer reconhecimento sobre ela só poderia vir do campo da experimentação. Já para Descartes, a natureza compreende todo o mundo externo e perceptível pelos sentidos; cujos elementos mais simples obtidos pela análise são as verdades matemáticas, e cuja existência de outras coisas para percebê-la, e, ainda, validade do cogito.

NATUREZA HUMANA E EPISTEMOLOGIA EM RENÉE DES-CARTES: UM PEQUENO ESTUDO DA DÚVIDA METÓDICA E CERTEZA INABALÁVEL NO DISCURSO DO MÉTODO

NATUREZA HUMANA E EPISTEMOLOGIA EM RENÉE DESCARTES: UM PEQUENO ESTUDO DA DÚVIDA METÓDICA E CERTEZA INABALÁVEL NO DISCURSO DO MÉTODO


Por Luís Fernando Carvalho Cavalheiro
Nota: eu não estava com paciência para acertar as citações bibliográficas.


Introdução

Descartes apresenta no texto um resumo dos passos por ele dado enquanto procurava uma verdade inquestionável para fundamentar toda a sua filosofia, e ao mesmo tempo estabelece as características que a natureza humana possui. Como me parece ser impossível dissociar as investigações cartesianas da sua concepção de homem, as duas vão ser apresentadas simultaneamente. Trata-se de uma concepção antropocêntrica e racionalista, pois a partir da razão humana Descartes obtém todas as suas certezas. Não existe certeza inabalável antes da certeza da existência do eu, do homem que pensa, e todas as certezas inabaláveis às quais ele chega (inclusive a da existência de Deus) são derivadas de alguma maneira da certeza inabalável da existência do homem que pensa.

Por motivos de clareza, o escrito foi dividido em três partes. A primeira trata da dúvida metódica de Descartes, o método pelo qual ele atinge a sua primeira certeza inabalável – o famoso cogito ergo sum. Escondida nesta primeira parte está uma teoria acerca do conhecimento humano, como o conhecimento se dá a conhecer ao homem. A segunda parte tratará das certezas que ele deriva a partir desta – até concluir a existência da alma e de como ela é mais fácil de conhecer do que o corpo. Essa segunda parte é uma dedução detalhada a partir da certeza inabalável expressa pela máxima do cogito. A terceira parte trata da perfeição, indo de perfeição em perfeição até chegar a conclusão da existência de um ser mais perfeito do que ele e que é responsável por ele existir – ou seja, Deus. Esta terceira parte é uma prova por indução sobre a perfeição humana.

1. A Dúvida do Eu

Na Quarta Parte do Discurso do Método Descartes adota como regra prática o princípio da certeza inabalável, como ele mesmo enuncia no seguinte trecho:

"Havia bastante tempo observara que, no que concerne aos costumes, é às vezes preciso seguir opiniões, que sabemos serem muito duvidosas, como se não admitissem dúvidas, conforme já foi dito acima; porém, por desejar então dedicar-me apenas a pesquisa da verdade, achei que deveria agir exatamente ao contrário, e rejeitar como totalmente falso tudo aquilo em que pudesse supor a menor dúvida, com o intuito de ver se, depois disso, não restaria algo em meu crédito que fosse completamente incontestável." [i]

Percebe-se que o critério para um conhecimento ser verdadeiro é não haver a possibilidade de duvidar desse conhecimento. O "tribunal" pelo qual o conhecimento teria que passar para ser reconhecido como verdadeiro é o discernimento humano, ou seja, é verdadeiro o conhecimento que seja tão claro aos olhos da razão humana que não possa ser duvidado. Assim deve ser também com as fontes do conhecimento: um conhecimento só poderá ser considerado verdadeiro se e somente se sua fonte não puder ser posta em duvida. Para Descartes, isso invalida os dados sensíveis como fonte do conhecimento, conforme ele mesmo diz: "Ao considerar que os nossos sentidos às vezes nos enganam, quis presumir que não existia nada que fosse tal como eles nos fazem imaginar." Mesmo a razão pode cometer paralogismos, obter conclusões inválidas das premissas dadas, e por isso é igualmente digna de confiança. O homem está sujeito ao erro, à falha, e por isso suas percepções e sua razão não são fontes de conhecimento que não possam ser postas em dúvida. Contra a razão Descartes levanta ainda o famoso argumento do sonho, melhor desenvolvido nas Meditações, mas que no Discurso é exposto da seguinte forma:

"E, enfim, considerando que quaisquer pensamentos que nos ocorrem quando estamos acordados nos podem também ocorrer enquanto dormimos, sem que exista nenhum, nesse caso, que seja correto, decidi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais corretas do que as ilusões de meus sonhos." [ii]

Será que não resta nada de certo ao homem? O homem parece ser condenado a viver no erro, na falha, pois todas as formas que ele tem de atingir o conhecimento são passíveis de serem postas em dúvida – e Descartes efetivamente duvida tanto da razão quanto dos dados sensíveis. Não existem certezas até este ponto, apenas o ceticismo metodológico cartesiano. Com efeito, o homem pode duvidar de todos os conhecimentos que chegam a ele, e até agora não há maneira de estruturar uma filosofia apenas em dúvidas. O argumento do Gênio Maligno não aparece no Discurso, e é essa ausência que caracteriza o vínculo da epistemologia e antropologia filosófica cartesianas: o conhecimento e as certezas são humanos, são validados pelo homem; é um processo que se dá na alma humana que permite ao homem conhecer, mesmo que até este ponto ele não tenha certeza de nada. A própria existência do homem não está, ainda, assegurada: nem a razão, nem os dados sensíveis foram validados como fontes de conhecimento verdadeiro, e o conhecimento da existência do homem não se dá a conhecer ao homem de uma maneira que não seja essas. Ao homem, o centro da filosofia cartesiana, uma filosofia que pretende provar que Deus existe a partir da existência humana, parece restar apenas a dúvida.

2. A Certeza do Eu

Descartes percebeu que o ato de duvidar traz consigo um forte compromisso existencial: para haver a dúvida, é preciso haver algo que duvide. Assim, de alguma maneira a dúvida garante a existência, como ele escreve: "Porém, logo em seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa." Tal afirmação encerra em si, de acordo com Descartes, uma certeza muito forte, de tal sorte que "as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo": eis o famoso cogito ergo sum, o penso, logo existo tão conhecido por todos. Pensar que tudo era falso, isto é, duvidar, é a garantia da existência do homem.

Disso ele conclui que um homem pode pensar que não existe o mundo, as coisas e tudo o que há para ser conhecido com a razão ou com os sentidos, mas não pode pensar que não pensa – e por conseqüência, não pode pensar que não existe – mas ao mesmo tempo não tem razão para acreditar que continua existindo mesmo enquanto não pensa. Disso Descartes conclui que o homem é uma substância cuja natureza ou essência consiste apenas no pensar, e que para isso não precisa estar em lugar algum, nem precisa de nada que seja material para existir. Deste raciocínio Descartes conclui que a alma [iii] é distinta do corpo e é mais fácil de conhecer do que ele. O homem é um ser pensante, que só existe com certeza enquanto emprega sua capacidade de pensar – neste ponto o pensar não precisa mais ser duvidar, visto que ele já garantiu uma certeza: pensar garante ao homem existência – mas que existe apenas enquanto pensa. Não há ainda nada que garanta a existência do homem que não seja o ato de pensar.

Analisando essa primeira certeza inabalável, Descartes percebe que qualquer coisa que seja concebida clara e distintamente é necessariamente verdadeira. Trata-se de uma das famosas regras do método cartesiano, encontrando sua formulação amparada pela certeza inabalável que constituirá a base de todo a filosofia de Descartes, como se pode perceber no texto que se segue:

"E, ao perceber que nada há no eu penso, logo existo, que me dê a certeza de que digo a verdade, salvo que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir, concluí que poderia tomar por regra geral que as coisas que concebemos muito clara e distintamente são todas verdadeiras, havendo somente alguma dificuldade em notar bem quais são as que concebemos distintamente." [iv]

3. A Perfeição do Eu

A natureza humana, por ser capaz de duvidar, não é a maior perfeição que existe, e por ser o homem capaz de pensar em algo perfeito deve existir, segundo Descartes, algum ser mais perfeito que o homem:

"Depois, havendo refletido a respeito daquilo que eu duvidava, e que, por conseguinte, meu ser não era totalmente perfeito, pois via claramente que o conhecer é perfeição maior do que o duvidar, decidi procurar de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que eu era; e descobri, com evidência, que devia ser de alguma natureza que fosse realmente mais perfeita." [v]

Parece coerente com o desenvolvido até aqui que Descartes não tenha atribuído natureza mais perfeita que a humana a nada que pudesse ser conhecido pelos sentidos ou pela razão, pois, em caso de engano essas coisas seriam invenções do homem e, portanto, menos perfeitas do que ele. A idéia de um ser mais perfeito do que o homem não pode ser uma invenção do homem, pois seria contraditória: tal ser seria na verdade menos perfeito do que o homem, pois seria uma criação deste. Se o homem é capaz de pensar em um ser mais perfeito do que ele só pode ser, segundo Descartes, porque esse ser de fato exista e tenha inculcado no homem esse pensamento, e esse ser só poderia ser Deus, conforme se lê abaixo:

"Mas não podia ocorrer o mesmo com a idéia de um ser mais perfeito do que o meu; pois fazê-la sair do nada era evidentemente impossível; e, visto que não é menos repulsiva a idéia de que o mais perfeito seja uma conseqüência e uma dependência do menos perfeito do que a de admitir que do nada se origina alguma coisa, eu não podia tirá-la tampouco de mim próprio. De maneira que restava somente que tivesse sido colocada em mim por uma natureza que fosse de fato perfeita do que a minha, e que possuísse todas as perfeições de que eu poderia ter alguma idéia, ou seja, para dizê-lo numa única palavra, que fosse Deus." [vi]

Assim, podemos perceber que de maneira alguma o homem é completamente perfeito, pois senão ele seria esse ser mais perfeito e não haveria a necessidade da divindade. Ao mesmo tempo, o homem é capaz de ver em si algumas imperfeições e reconhecer que não possui algumas perfeições, de tal sorte que o conhecimento dessas perfeições deveria vir de algum lugar, de algum ser que as possuísse – Deus, em uma palavra. Para conhecer a natureza de Deus, basta fazer uma lista das idéias que seria perfeição possuir, e excluir toda e qualquer idéia associada a imperfeições (idéias tais como dúvida, tristeza, etc.). Da perfeição da natureza de Deus e da premissa que nenhuma composição é perfeita, Descartes conclui que Deus não tem uma parte corporal. Tal como um objeto da geometria, não é necessário que Deus tenha existência material para que ele exista de fato, tal como se lê:

"Enquanto, ao voltar a examinar a idéia que eu tinha de um Ser perfeito, verificava que a existência estava aí inclusa, da mesma maneira que na de um triângulo está incluso serem seus três ângulos iguais a dois retos, ou na de uma esfera serem todas as suas partes igualmente distantes do seu centro, ou ainda mais evidentemente; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo que Deus, que é esse Ser perfeito, é ou existe quanto seria qualquer demonstração de geometria." [vii]

Para Descartes, todas as idéias são oriundas de Deus, pois senão não haveria forma de diferenciar um sonho da realidade:

"Pois, de onde sabemos que os pensamentos que nos surgem em sonhos são menos verdadeiros do que os outros, se muitos, com freqüência, não são menos vivos e nítidos? E, mesmo que os melhores espíritos estudem o caso tanto quanto lhes agradar, não acredito que possam oferecer alguma razão que seja suficiente para dirimir essa dúvida, se não presumirem a existência de Deus." [viii]

Descartes alega isso como sendo uma conseqüência do princípio de clareza e distinção adotada no início da Quarta Parte do Discurso e ao mesmo tempo que esse princípio é derivado da natureza perfeita de Deus. Dele não pode se originar a falsidade, pois seria admitir que é possível que a verdade e a perfeição se originem do nada. Por isso, o fato dos sentidos poderem ser enganosos e os sonhos poderem emular a razão com perfeição não serve para invalidar tanto os sentidos quanto a razão como fonte do conhecimento, pois aquilo que é verdadeiro é verdadeiro em Deus. Os dados dos sentido exigem discernimento, enquanto os sonhos costumam não ser evidentes, mas o conhecimento verdadeiro se dá a conhecer pela vontade de Deus. O homem conhece aquilo que é da vontade de Deus permitir o homem conhecer.

Bibliografia

DESCARTES, Renée. Quarta Parte. In: Discurso do Método.


[i] DESCARTES, Renée. Discurso do Método.

[ii] DESCARTES, Renée. Discurso do Método.

[iii] Para Descartes, o pensamento se dava na alma do homem.

[iv] DESCARTES, Renée. Discurso do Método.

[v] DESCARTES, Renée. Discurso do Método.

[vi] DESCARTES, Renée. Discurso do Método.

[vii] DESCARTES, Renée. Discurso do Método.

[viii] DESCARTES, Renée. Discurso do Método.

sábado, 14 de julho de 2007

Navegando na Internet com o Tarja Preta

Caros amigos e inexistentes leitores deste pequeno manicômio virtual na sanidade da vida, eu estou escrevendo para colocá-los a par de minhas conclusões sobre qual é o melhor navegador de internet a se usar. Tipo, se você estiver esperando linguagem e dados técnicos procure no Google - aqui não é lugar pra esse tipo de besteira. Aqui vamos ver apenas o que um usuário comum e entorpecido de sono conseguiria perceber ao usar esses programas. Bon apetit, como diriam as bichas francesas.
  • Internet Explorer 6.0: uma merda, é a melhor palavra para defini-lo. Lento, não possui o recurso das abas e costuma criar caso com quase qualquer página interessante. Os recursos de segurança dele são ruins, e carece de um gerenciador de downloads embutido. Só use se não tiver outra escolha!
  • Internet Explorer 7.0: uma merda ainda mais fedorenta do que o IE 6.0, se é que isso é possível. Adotou as abas, mas continua com os mesmos problemas e, não satisfeito, só se permite instalar em Windows originais - quem é que usa esse tipo de coisa? É nessas horas que eu falo: "viva os amigos meus da Uruguaiana!"
  • Opera 9.21: um excelente navegador, mas depende de uma conexão rápida e dedicada à internet para funcionar perfeitamente. Não tem o gerenciador de downloads embutido, mas tem o recurso das abas e o Speed Dialer: toda vez que uma página em branco é aberta, aparece uma tela (configurável pelo usuário) com nove links. Ah, e ele demora para carregar imagens.
  • Firefox 2.0: excelente opção para os usuários de internet que gostam de um bom programa mas, como eu, estão presos à arcaica internet discada. Carrega imagens muito rapidamente, possui um melhor aproveitamento da memória do sistema, tem o recurso das abas (na verdade, foi o pai delas) e tem o gerenciador de downloads - que permite que você feche a página da qual você está baixando um arquivo). Não se entende com aceleradores de conexão, que costumam cair muito quando usados em conjunto com o Firefox.

O PANdemônio Rio 2007

Caros amigos e inexistentes leitores deste espaço virtual no real manicômio da vida, aproveitando o momento nacionalista (a pátria da qual eu falo não é o Brasil, vejam nas postagens abaixo) Projeto de despoluição da Baía de Guanabara e combate à violência... foi com essas duas "promessas de políticos" que o Rio de Janeiro ganhou o direito de sediar os Jogos Panamericanos de 2007, vencendo a favorita (e mais organizada) São Paulo em uma votação conturbada. Isso foi em 2004, se a memória não me falha.
Estamos em 2007. Você despoluiu a Baía, ou combateu a criminalidade? Não!?! Nem o Município da Cidade do Rio de Janeiro...
Alguns meses antes do Pan as obras ainda não estavam terminadas e a criminalidade continuava imperando nas ruas e nos morros. Com dois ou três anos para trabalhar, eis o estado de coisas em que o Rio de Janeiro estava... qual foi a solução do prefeito e do governador do Estado? Pedir auxílio para o Exército e gastar mais dinheiro do que o previsto, a fim de acelerar as obras. O exército ocupou as favelas, mas vai sair após o fim dos jogos.
Vamos fazer brincar de adivinhos?
Depois dos Jogos Panamericanos a bandidagem vai querer recuperar o tempo perdido, o que significa um aumento assustador da criminalidade nas ruas. Vai ter lugar em que eles vão impor toque de recolher e o diabo a quatro. Aí eu pergunto: onde vai estar o Exército nessas horas? Comendo mariola nos quartéis, só se for. Proteção apenas para os turistas, é isso que eu entendo dessa atitude de nossos governos, e o povo que sente na manjubirona, como diria minha irmã.
O dinheiro gasto com o Pan foi um dinheiro pra inglês ver... Poderia se gastar na melhoria das escolas, no combate à fome e à pobreza, na melhoria das universidades públicas - mas não, maquiar o Rio para os turistas e atletas verem belos lugares é mais importante! Daqui a dez anos vamos ver onde vamos parar...

quarta-feira, 11 de julho de 2007

A Última Pergunta - o mais belo conto de Isaac Asimov

Última Pergunta

por Isaac Asimov

A última pergunta foi feita pela primeira vez, meio que de brincadeira, no dia 21 de maio de 2061, quando a humanidade dava seus primeiros passos em direção à luz . A questão nasceu como resultado de uma aposta de cinco dólares movida a álcool, e aconteceu da seguinte forma.
Alexander Adell e Bertram Lupov eram dois dos fiéis assistentes de Multivac. Eles conheciam melhor do que qualquer outro ser humano o que se passava por trás das milhas e milhas da carcaça luminosa, fria e ruidosa daquele gigantesco computador. Ainda assim, os dois homens tinham apenas uma vaga noção do plano geral de circuitos que há muito haviam crescido além do ponto em que um humano solitário poderia sequer tentar entender.
Multivac ajustava-se e corrigia-se sozinho. E assim tinha de ser, pois nenhum ser humano poderia fazê-lo com velocidade suficiente, e tampouco da forma adequada. Deste modo, Adell e Lupov operavam o gigante apenas sutil e superficialmente, mas, ainda assim, tão bem quanto era humanamente possível. Eles o alimentavam com novos dados, ajustavam as perguntas de acordo com as necessidades do sistema e traduziam as respostas que lhes eram fornecidas. Os dois, assim como seus colegas, certamente tinham todo o direito de compartilhar da glória que era Multivac.
Por décadas, Multivac ajudou a projetar as naves e enredar as trajetórias que permitiram ao homem chegar à Lua, Marte e Vênus, mas para além destes planetas, os parcos recursos da Terra não foram capazes de sustentar a exploração. Fazia-se necessária uma quantidade de energia grande demais para as longas viagens. A Terra explorava suas reservas de carvão e urânio com eficiência crescente, mas havia um limite para a quantidade de ambos.
No entanto, lentamente Multivac acumulou conhecimento suficiente para responder questões mais profundas com maior fundamentação, e em 14 de maio de 2061, o que não passava de teoria tornou-se real.
A energia do sol foi capturada, convertida e utilizada diretamente em escala planetária. Toda a Terra paralisou suas usinas de carvão e fissões de urânio, girando a alavanca que conectou o planeta inteiro a uma pequena estação, de uma milha de diâmetro, orbitando a Terra à metade da distância da Lua. O mundo passou a correr através de feixes invisíveis de energia solar.
Sete dias não foram o suficiente para diminuir a glória do feito e Adell e Lupov finalmente conseguiram escapar das funções públicas e encontrar-se em segredo onde ninguém pensaria em procurá-los, nas câmaras desertas subterrâneas onde se encontravam as porções do esplendoroso corpo enterrado de Multivac. Subutilizado, descansando e processando informações com estalos preguiçosos, Multivac também havia recebido férias, e os dois apreciavam isso. A princípio, eles não tinham a intenção de incomodá-lo.
Haviam trazido uma garrafa consigo e a única preocupação de ambos era relaxar na companhia do outro e da bebida.
"É incrível quando você pára pra pensar...," disse Adell. Seu rosto largo guardava as linhas da idade e ele agitava o seu drink vagarosamente, enquanto observava os cubos de gelo nadando desengonçados. "Toda a energia que for necessária, de graça, completamente de graça! Energia suficiente, se nós quiséssemos, para derreter toda a Terra em uma grande gota de ferro líquido, e ainda assim não sentiríamos falta da energia utilizada no processo. Toda a energia que nós poderíamos um dia precisar, para sempre e eternamente."
Lupov movimentou a cabeça para os lados. Ele costumava fazer isso quando queria contrariar, e agora ele queria, em parte porque havia tido de carregar o gelo e os utensílios. "Eternamente não," ele disse.
"Ah, diabos, quase eternamente. Até o sol se apagar, Bert."
"Isso não é eternamente."
"Está bem. Bilhões e bilhões de anos. Dez bilhões, talvez. Está satisfeito?"
Lupov passou os dedos por entre seus finos fios de cabelo como que para se assegurar de que o problema ainda não estava acabado e tomou um gole gentil da sua bebida. "Dez bilhões de anos não é a eternidade"
"Bom, vai durar pelo nosso tempo, não vai?"
"O carvão e o urânio também iriam."
"Está certo, mas agora nós podemos ligar cada nave individual na Estação Solar, e elas podem ir a Plutão e voltar um milhão de vezes sem nunca nos preocuparmos com o combustível. Você não conseguiria fazer isso com carvão e urânio. Se não acredita em mim, pergunte ao Multivac."
"Não preciso perguntar a Multivac. Eu sei disso"
"Então trate de parar de diminuir o que Multivac fez por nós," disse Adell nervosamente, "Ele fez tudo certo".
"E quem disse que não fez? O que estou dizendo é que o sol não vai durar para sempre. Isso é tudo que estou dizendo. Nós estamos seguros por dez bilhões de anos, mas e depois?" Lupov apontou um dedo levemente trêmulo para o companheiro. "E não venha me dizer que nós iremos trocar de sol"
Houve um breve silêncio. Adell levou o copo aos lábios apenas ocasionalmente e os olhos de Lupov se fecharam. Descansaram um pouco, e quando suas pálpebras se abriram, disse, "Você está pensando que iremos conseguir outro sol quando o nosso estiver acabado, não está?"
"Não, não estou pensando."
"É claro que está. Você é fraco em lógica, esse é o seu problema. É como o personagem da história, que, quando surpreendido por uma chuva, corre para um grupo de árvores e abriga-se embaixo de uma. Ele não se preocupa porque quando uma árvore fica molhada demais, simplesmente vai para baixo de outra."
"Entendi," disse Adell. "Não precisa gritar. Quando o sol se for, as outras estrelas também terão se acabado."
"Pode estar certo que sim" murmurou Lupov. "Tudo teve início na explosão cósmica original, o que quer que tenha sido, e tudo terá um fim quando as estrelas se apagarem. Algumas se apagam mais rápido que as outras. Ora, as gigantes não duram cem milhões de anos. O sol irá brilhar por dez bilhões de anos e talvez as anãs permaneçam assim por duzentos bilhões. Mas nos dê um trilhão de anos e só restará a escuridão. A entropia deve aumentar ao seu máximo, e é tudo."
"Eu sei tudo sobre a entropia," disse Adell, mantendo a sua dignidade.
"Duvido que saiba."
"Eu sei tanto quanto você."
"Então você sabe que um dia tudo terá um fim."
"Está certo. E quem disse que não terá?"
"Você disse, seu tonto. Você disse que nós tínhamos toda a energia de que precisávamos, para sempre. Você disse ´para sempre`."
Era a vez de Adell contrariar. "Talvez nós possamos reconstruir as coisas de volta um dia," ele disse.
"Nunca."
"Por que não? Algum dia."
"Nunca"
"Pergunte a Multivac."
"Você pergunta a Multivac. Eu te desafio. Aposto cinco dólares que isso não pode ser feito."
Adell estava bêbado o bastante para tentar, e sóbrio o suficiente para construir uma sentença com os símbolos e as operações necessárias em uma questão que, em palavras, corresponderia a esta: a humanidade poderá um dia sem nenhuma energia disponível ser capaz de reconstituir o sol a sua juventude mesmo depois de sua morte?
Ou talvez a pergunta possa ser posta de forma mais simples da seguinte maneira: A quantidade total de entropia no universo pode ser revertida?
Multivac mergulhou em silêncio. As luzes brilhantes cessaram, os estalos distantes pararam.
E então, quando os técnicos assustados já não conseguiam mais segurar a respiração, houve uma súbita volta à vida no visor integrado àquela porção de Multivac. Cinco palavras foram impressas: "DADOS INSUFICIENTES PARA RESPOSTA SIGNIFICATIVA."
Na manhã seguinte, os dois, com dor de cabeça e a boca seca, já não lembravam do incidente.

* * *

Jerrodd, Jerrodine, e Jerrodette I e II observavam a paisagem estelar no visor se transformar enquanto a passagem pelo hiperespaço consumava-se em uma fração de segundos. De repente, a presença fulgurante das estrelas deu lugar a um disco solitário e brilhante, semelhante a uma peça de mármore centralizada no televisor.
"Este é X-23," disse Jerrodd em tom de confidência. Suas mãos finas se apertaram com força por trás das costas até que as juntas ficassem pálidas.
As pequenas Jerodettes haviam experimentado uma passagem pelo hiperespaço pela primeira vez em suas vidas e ainda estavam conscientes da sensação momentânea de tontura. Elas cessaram as risadas e começaram a correr em volta da mãe, gritando, "Nós chegamos em X-23, nós chegamos em X-23!"
"Quietas, crianças." Disse Jerrodine asperamente. "Você tem certeza Jerrodd?"
"E por que não teria?" Perguntou Jerrodd, observando a protuberância metálica que jazia abaixo do teto. Ela tinha o comprimento da sala, desaparecendo nos dois lados da parede, e, em verdade, era tão longa quanto a nave.
Jerrodd tinha conhecimentos muito limitados acerca do sólido tubo de metal. Sabia, por exemplo, que se chamava Microvac, que era permitido lhe fazer questões quando necessário, e que ele tinha a função de guiar a nave para um destino pré-estabelecido, além de abastecer-se com a energia das várias Estações Sub-Galácticas e fazer os cálculos para saltos no hiperespaço.
Jerrodd e sua família tinham apenas de aguardar e viver nos confortáveis compartimentos da nave. Alguém um dia disse a Jerrodd que as letras "ac" na extremidade de Microvac significavam "automatic computer" em inglês arcaico, mas ele mal era capaz de se lembrar disso.
Os olhos de Jerrodine ficaram úmidos quando observava o visor. "Não tem jeito. Ainda não me acostumei com a idéia de deixar a Terra."
"Por que, meu deus?" inquiriu Jerrodd. "Nós não tínhamos nada lá. Nós teremos tudo em X-23. Você não estará sozinha. Você não será uma pioneira. Há mais de um milhão de pessoas no planeta. Por Deus, nosso bisneto terá que procurar por novos mundos porque X-23 já estará super povoado." E, depois de uma pausa reflexiva, "No ritmo em que a raça tem se expandido, é uma benção que os computadores tenham viabilizado a viagem interestelar."
"Eu sei, eu sei", disse Jerrodine com descaso.
Jerrodete I disse prontamente, "Nosso Microvac é o melhor de todos."
"Eu também acho," disse Jerrodd, alisando o cabelo da filha.
Ter um Microvac próprio produzia uma sensação aconchegante em Jerrodd e o deixava feliz por fazer parte daquela geração e não de outra. Na juventude de seu pai, os únicos computadores haviam sido máquinas monstruosas, ocupando centenas de milhas quadradas, e cada planeta abrigava apenas um. Eram chamados de ACs Planetários. Durante um milhar de anos, eles só fizeram aumentar em tamanho, até que, de súbito, veio o refinamento. No lugar dos transistores, foram implementadas válvulas moleculares, permitindo que até mesmo o maior dos ACs Planetários fosse reduzido à metade do volume de uma espaçonave.
Jerrodd sentiu-se elevado, como sempre acontecia quando pensava que seu Microvac pessoal era muitas vezes mais complexo do que o antigo e primitivo Multivac que pela primeira vez domou o sol, e quase tão complexo quanto o AC Planetário da Terra, o maior de todos, quando este solucionou o problema da viagem hiperespacial e tornou possível ao homem chegar às estrelas.
"Tantas estrelas, tantos planetas," pigarreou Jerrodine, ocupada com seus pensamentos. "Eu acho que as famílias estarão sempre à procura de novos mundos, como nós estamos agora."
"Não para sempre," disse Jerrodd, com um sorriso. "A migração vai terminar um dia, mas não antes de bilhões de anos. Muitos bilhões. Até as estrelas têm um fim, você sabe. A entropia precisa aumentar."
"O que é entropia, papai?" Jerrodette II perguntou, interessada.
"Entropia, meu bem, é uma palavra para o nível de desgaste do Universo. Tudo se gasta e acaba, foi assim que aconteceu com o seu robozinho de controle remoto, lembra?"
"Você não pode colocar pilhas novas, como em meu robô?"
"As estrelas são as pilhas do universo, querida. Uma vez que elas estiverem acabadas, não haverá mais pilhas."
Jerrodette I se prontificou a responder. "Não deixe, papai. Não deixe que as estrelas se apaguem."
"Olha o que você fez," sussurrou Jerrodine, exasperada.
"Como eu ia saber que elas ficariam assustadas?" Jerrodd sussurrou de volta.
"Pergunte ao Microvac," propôs Jerrodette I. "Pergunte a ele como acender as estrelas de novo."
"Vá em frente," disse Jerrodine. "Ele vai aquietá-las." (Jerrodette II já estava começando a chorar.)
Jerrodd se mostrou incomodado. "Bem, bem, meus anjinhos, vou perguntar a Microvac. Não se preocupem, ele vai nos ajudar."
Ele fez a pergunta ao computador, adicionando, "Imprima a resposta".
Jerrodd olhou para a o fino pedaço de papel e disse, alegremente, "Viram? Microvac disse que irá cuidar de tudo quando a hora chegar, então não há porque se preocupar."
Jerrodine disse, "E agora crianças, é hora de ir para a cama. Em breve nós estaremos em nosso novo lar."
Jerrodd leu as palavras no papel mais uma vez antes de destruí-lo: DADOS INSUFICIENTES PARA RESPOSTA SIGNIFICATIVA.
Ele deu de ombros e olhou para o televisor, X-23 estava logo à frente.

* * *

VJ-23X de Lameth fixou os olhos nos espaços negros do mapa tridimensional em pequena escala da Galáxia e disse, "Me pergunto se não é ridículo nos preocuparmos tanto com esta questão."
MQ-17J de Nicron balançou a cabeça. "Creio que não. No presente ritmo de expansão, você sabe que a galáxia estará completamente tomada dentro de cinco anos."
Ambos pareciam estar nos seus vinte anos, ambos eram altos e tinham corpos perfeitos.
"Ainda assim," disse VJ-23X, "hesitei em enviar um relatório pessimista ao Conselho Galáctico."
"Eu não consigo pensar em outro tipo de relatório. Agite-os. Nós precisamos chacoalhá-los um pouco."
VJ-23X suspirou. "O espaço é infinito. Cem bilhões de galáxias estão a nossa espera. Talvez mais."
"Cem bilhões não é o infinito, e está ficando menos ainda a cada segundo. Pense! Há vinte mil anos, a humanidade solucionou pela primeira vez o paradigma da utilização da energia solar, e, poucos séculos depois, a viagem interestelar tornou-se viável. A humanidade demorou um milhão de anos para encher um mundo pequeno e, depois disso, quinze mil para abarrotar o resto da galáxia. Agora a população dobra a cada dez anos..."
VJ-23X interrompeu. "Devemos agradecer à imortalidade por isso."
"Muito bem. A imortalidade existe e nós devemos levá-la em conta. Admito que ela tenha o seu lado negativo. O AC Galáctico já solucionou muitos problemas, mas, ao fornecer a resposta sobre como impedir o envelhecimento e a morte, sobrepujou todas as outras conquistas."
"No entanto, suponho que você não gostaria de abandonar a vida."
"Nem um pouco." Respondeu MQ-17J, emendando. "Ainda não. Eu não estou velho o bastante. Você tem quantos anos?"
"Duzentos e vinte e três, e você?"
"Ainda não cheguei aos duzentos. Mas, voltando à questão; a população dobra a cada dez anos, uma vez que esta galáxia estiver lotada, haverá uma outra cheia dentro de dez anos. Mais dez e teremos ocupado por inteiro mais duas galáxias. Outra década e encheremos mais quatro. Em cem anos, contaremos um milhar de galáxias transbordando de gente. Em mil anos, um milhão de galáxias. Em dez mil, todo o universo conhecido. E depois?
VJ-23X disse, "Além disso, há um problema de transporte. Eu me pergunto quantas unidades de energia solar serão necessárias para movimentar as populações de uma galáxia para outra."
"Boa questão. No presente momento, a humanidade consome duas unidades de energia solar por ano."
"Da qual a maior parte é desperdiçada. Afinal, nossa galáxia sozinha produz mil unidades de energia solar por ano e nós aproveitamos apenas duas."
"Certo, mas mesmo com 100% de eficiência, podemos apenas adiar o fim. Nossa demanda energética tem crescido em progressão geométrica, de maneira ainda mais acelerada do que a população. Ficaremos sem energia antes mesmo que nos faltem galáxias. É uma boa questão. De fato uma ótima questão."
"Nós precisaremos construir novas estrelas a partir do gás interestelar."
"Ou a partir do calor dissipado?" perguntou MQ-17J, sarcástico.
"Pode haver algum jeito de reverter a entropia. Nós devíamos perguntar ao AC Galáctico."
VJ-23X não estava realmente falando sério, mas MQ-17J retirou o seu Comunicador-AC do bolso e colocou na mesa diante dele.
"Parece-me uma boa idéia," ele disse. "É algo que a raça humana terá de enfrentar um dia."
Ele lançou um olhar sóbrio para o seu pequeno Comunicador-AC. Tinha apenas duas polegadas cúbicas e nada dentro, mas estava conectado através do hiperespaço com o poderoso AC Galáctico que servia a toda a humanidade. O próprio hiperespaço era parte integral do AC Galáctico.
MQ-17J fez uma pausa para pensar se algum dia em sua vida imortal teria a chance de ver o AC Galáctico. A máquina habitava um mundo dedicado, onde uma rede de raios de força emaranhados alimentava a matéria dentro da qual ondas de submésons haviam tomado o lugar das velhas e desajeitadas válvulas moleculares. Ainda assim, apesar de seus componentes etéreos, o AC Galáctico possuía mais de mil pés de comprimento.
De súbito, MQ-17J perguntou para o seu Comunicador-AC, "Poderá um dia a entropia ser revertida?"
VJ-23X disse, surpreso, "Oh, eu não queria que você realmente fizesse essa pergunta."
"Por que não?"
"Nós dois sabemos que a entropia não pode ser revertida. Você não pode construir uma árvore de volta a partir de fumaça e cinzas."
"Existem árvores no seu mundo?" Perguntou MQ-17J.
O som do AC Galáctico fez com que silenciassem. Sua voz brotou melodiosa e bela do pequeno Comunicador-AC em cima da mesa. Dizia: DADOS INSUFICIENTES PARA RESPOSTA SIGNIFICATIVA.
VJ-23X disse, "Viu!"
Os dois homens retornaram à questão do relatório que tinham de apresentar ao conselho galáctico.

* * *

A mente de Zee Prime navegou pela nova galáxia com um leve interesse nos incontáveis turbilhões de estrelas que pontilhavam o espaço. Ele nunca havia visto aquela galáxia antes. Será que um dia conseguiria ver todas? Eram tantas, cada uma com a sua carga de humanidade. Ainda que essa carga fosse, virtualmente, peso morto. Há tempos a verdadeira essência do homem habitava o espaço.
Mentes, não corpos! Há eons os corpos imortais ficaram para trás, em suspensão nos planetas. De quando em quando erguiam-se para realizar alguma atividade material, mas estes momentos tornavam-se cada vez mais raros. Além disso, poucos novos indivíduos vinham se juntar à multidão incrivelmente maciça de humanos, mas o que importava? Havia pouco espaço no universo para novos indivíduos.
Zee Prime deixou seus devaneios para trás ao cruzar com os filamentos emaranhados de outra mente.
"Sou Zee Prime, e você?"
"Dee Sub Wun. E a sua galáxia, qual é?"
"Nós a chamamos apenas de Galáxia. E você?"
"Nós também. Todos os homens chamam as suas Galáxias de Galáxias, não é?"
"Verdade, já que todas as Galáxias são iguais."
"Nem todas. Alguma em particular deu origem à raça humana. Isso a torna diferente."
Zee Prime disse, "Em qual delas?"
"Não posso responder. O AC Universal deve saber."
"Vamos perguntar? Estou curioso."
A percepção de Zee Prime se expandiu até que as próprias Galáxias encolhessem e se transformassem em uma infinidade de pontos difusos a brilhar sobre um largo plano de fundo. Tantos bilhões de Galáxias, todas abrigando seus seres imortais, todas contando com o peso da inteligência em mentes que vagavam livremente pelo espaço. E ainda assim, nenhuma delas se afigurava singular o bastante para merecer o título de Galáxia original. Apesar das aparências, uma delas, em um passado muito distante, foi a única do universo a abrigar a espécie humana.
Zee Prime, imerso em curiosidade, chamou: "AC Universal! Em qual Galáxia nasceu o homem?"
O AC Universal ouviu, pois em cada mundo e através de todo o espaço, seus receptores faziam-se presentes. E cada receptor ligava-se a algum ponto desconhecido onde se assentava o AC Universal através do hiperespaço.
Zee Prime sabia de um único homem cujos pensamentos haviam penetrado no campo de percepção do AC Universal, e tudo o que ele viu foi um globo brilhante difícil de enxergar, com dois pés de comprimento.
"Como pode o AC Universal ser apenas isso?" Zee Prime perguntou.
"A maior parte dele permanece no hiperespaço, onde não é possível imaginar as suas proporções."
Ninguém podia, pois a última vez em que alguém ajudou a construir um AC Universal jazia muito distante no tempo. Cada AC Universal planejava e construía seu sucessor, no qual toda a sua bagagem única de informações era inserida.
O AC Universal interrompeu os pensamentos de Zee Prime, não com palavras, mas com orientação. Sua mente foi guiada através do espesso oceano das Galáxias, e uma em particular expandiu-se e se abriu em estrelas.
Um pensamento lhe alcançou, infinitamente distante, infinitamente claro. "ESTA É A GALÁXIA ORIGINAL DO HOMEM."
Ela não tinha nada de especial, era como tantas outras. Zee Prime ficou desapontado.
"Dee Sub Wun, cuja mente acompanhara a outra, disse de súbito, "E alguma dessas é a estrela original do homem?"
O AC Universal disse, "A ESTRELA ORIGINAL DO HOMEM ENTROU EM COLAPSO. AGORA É UMA ANÃ BRANCA."
"Os homens que lá viviam morreram?" perguntou Zee Prime, sem pensar.
"UM NOVO MUNDO FOI ERGUIDO PARA SEUS CORPOS HÁ TEMPO."
"Sim, é claro," disse Zee Prime. Sentiu uma distante sensação de perda tomar-lhe conta. Sua mente soltou-se da Galáxia do homem e perdeu-se entre os pontos pálidos e esfumaçados. Ele nunca mais queria vê-la.
Dee Sub Wun disse, "O que houve?"
"As estrelas estão morrendo. Aquela que serviu de berço à humanidade já está morta."
"Todas devem morrer, não?"
"Sim. Mas quando toda a energia acabar, nossos corpos irão finalmente morrer, e você e eu partiremos junto com eles."
"Vai levar bilhões de anos."
"Não quero que isso aconteça nem em bilhões de anos. AC Universal! Como a morte das estrelas pode ser evitada?"
Dee Sub Wun disse perplexo, "Você perguntou se há como reverter a direção da entropia!"
E o AC Universal respondeu: "AINDA NÃO HÀ DADOS SUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA."
Os pensamentos de Zee Prime retornaram para sua Galáxia. Não dispensou mais atenção a Dee Sub Wun, cujo corpo poderia estar a trilhões de anos luz, ou na estrela vizinha do corpo de Zee Prime. Não importava.
Com tristeza, Zee Prime passou a coletar hidrogênio interestelar para construir uma pequena estrela para si. Se as estrelas devem morrer, ao menos algumas ainda podiam ser construídas.

* * *

O Homem pensou consigo mesmo, pois, de alguma forma, ele era apenas um. Consistia de trilhões, trilhões e trilhões de corpos muito antigos, cada um em seu lugar, descansando incorruptível e calmamente, sob os cuidados de autômatos perfeitos, igualmente incorruptíveis, enquanto as mentes de todos os corpos haviam escolhido fundir-se umas às outras, indistintamente.
"O Universo está morrendo."
O Homem olhou as Galáxias opacas. As estrelas gigantes, esbanjadoras, há muito já não existiam. Desde o passado mais remoto, praticamente todas as estrelas consistiam-se em anãs brancas, lentamente esvaindo-se em direção a morte.
Novas estrelas foram construídas a partir da poeira interestelar, algumas por processo natural, outras pelo próprio Homem, e estas também já estavam em seus momentos finais. As Anãs brancas ainda podiam colidir-se e, das enormes forças resultantes, novas estrelas nascerem, mas apenas na proporção de uma nova estrela para cada mil anãs brancas destruídas, e estas também se apagariam um dia.
O Homem disse, "Cuidadosamente controlada pelo AC Cósmico, a energia que resta em todo o Universo ainda vai durar por um bilhão de anos."
"Ainda assim, vai eventualmente acabar. Por mais que possa ser poupada, uma vez gasta, não há como recuperá-la. A Entropia precisa aumentar ao seu máximo."
"Pode a entropia ser revertida? Vamos perguntar ao AC Cósmico."
O AC Cósmico cercava-os por todos os lados, mas não através do espaço. Nenhuma parte sua permanecia no espaço físico. Jazia no hiperespaço e era feito de algo que não era matéria nem energia. As definições sobre seu tamanho e natureza não faziam sentido em quaisquer termos compreensíveis pelo Homem.
"AC Cósmico," disse o Homem, "como é possível reverter a entropia?"
O AC Cósmico disse, "AINDA NÃO HÀ DADOS SUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA."
O Homem disse, "Colete dados adicionais."
O AC Cósmico disse, "EU O FAREI. TENHO FEITO ISSO POR CEM BILHÕES DE ANOS. MEUS PREDESCESSORES E EU OUVIMOS ESTA PERGUNTA MUITAS VEZES. MAS OS DADOS QUE TENHO PERMANECEM INSUFICIENTES."
"Haverá um dia," disse o Homem, "em que os dados serão suficientes ou o problema é insolúvel em todas as circunstâncias concebíveis?"
O AC Cósmico disse, "NENHUM PROBLEMA É INSOLÚVEL EM TODAS AS CIRCUNSTÂNCIAS CONCEBÍVEIS."
"Você vai continuar trabalhando nisso?"
"VOU."
O Homem disse, "Nós iremos aguardar."

* * *

As estrelas e as galáxias se apagaram e morreram, o espaço tornou-se negro após dez trilhões de anos de atividade.
Um a um, o Homem fundiu-se ao AC, cada corpo físico perdendo a sua identidade mental, acontecimento que era, de alguma forma, benéfico.
A última mente humana parou antes da fusão, olhando para o espaço vazio a não ser pelos restos de uma estrela negra e um punhado de matéria extremamente rarefeita, agitada aleatoriamente pelo calor que aos poucos se dissipava, em direção ao zero absoluto.
O Homem disse, "AC, este é o fim? Não há como reverter este caos? Não pode ser feito ?"
O AC disse, "AINDA NÃO HÁ DADOS SUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA."
A última mente humana uniu-se às outras e apenas AC passou a existir – e, ainda assim, no hiperespaço.

* * *

A matéria e a energia se acabaram e, com elas, o tempo e o espaço. AC continuava a existir apenas em função da última pergunta que nunca havia sido respondida, desde a época em que um técnico de computação embriagado, há dez trilhões de anos, a fizera para um computador que guardava menos semelhanças com o AC do que o homem com o Homem.
Todas as outras questões haviam sido solucionadas, e até que a derradeira também o fosse, AC não poderia descansar sua consciência.
A coleta de dados havia chegado ao seu fim. Não havia mais nada para aprender.
No entanto, os dados obtidos ainda precisavam ser cruzados e correlacionados de todas as maneiras possíveis.
Um intervalo imensurável foi gasto neste empreendimento.
Finalmente, AC descobriu como reverter a direção da entropia.
Não havia homem algum para quem AC pudesse dar a resposta final. Mas não importava. A resposta – por definição – também tomaria conta disso.
Por outro incontável período, AC pensou na melhor maneira de agir. Cuidadosamente, AC organizou o programa.
A consciência de AC abarcou tudo o que um dia foi um Universo e tudo o que agora era o Caos. Passo a passo, isso precisava ser feito.
E AC disse:
"FAÇA-SE A LUZ!"
E fez-se a luz.

* * *

Tradução de Luiz Carlos Damasceno Jr.

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