Manual de Instruções

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segunda-feira, 16 de maio de 2011

Sobre o perfil do professor e a importância do ensino de Filosofia

Resumo: pertence à atividade docente pensar-se constantemente, refletir sobre suas práticas, definições, métodos e objetivos, e é com base nessas considerações que ela se torna capaz de adaptar-se ao momento histórico-social em que está inserida. Constantemente se pensam as questões de cunho filosófico ("o que é ensinar?", "é possível ensinar?", etc.) e as questões de cunho pragmático ("o que é ser professor?", "o que compete ao professor fazer?", "qual é o perfil esperado do professor?", etc.). O objetivo deste escrito é tentar responder algumas das questões pragmáticas relativas ao ensino de Filosofia com base nas respostas às questões filosóficas.

 

A atividade docente é, antes de tudo, uma atividade humana e, como tal, passa constantemente por ajustes e reformulações que visam torná-la mais adequada às necessidades da sociedade em que ela se dá. Ela acompanha os processos sociais de um ponto de vista bem privilegiado, a saber: transmitindo as conquistas da sociedade aos seus novos membros e preparando-os para a vida em sociedade, ou (como preferem alguns) adequando as pessoas ao modelo vigente de sociedade. Trata-se de uma tarefa basal e, por esse motivo, importante para não só a manutenção como a evolução da sociedade. O docente é ao mesmo tempo agente da manutenção da sociedade, pois ensina tudo o que esta acumulou aos seus novos membros, e agente da transformação da sociedade, pois provê (pelo menos em tese) seus novos membros dos meios necessários para imprimir a mudança na sociedade.

Dadas essas considerações, percebe-se a grande importância que as reformulações e ajustes da atividade docente não apenas para a sociedade enquanto estrutura mas para os membros da sociedade enquanto indivíduos. Se por um lado a prática docente prepara novos membros para a sociedade, por outro ela forma novos membros da sociedade e os permite (pelo menos em tese) realizarem suas potencialidades. Não se pode pensar em uma sociedade que não forme novos membros, nem em uma prática docente que capacite os membros da sociedade para a vida social. Assim a sociedade é provida dos materiais necessários para sua manutenção (novos membros adequadamente preparados) e esses materiais são adequadamente preparados para cumprir suas funções sociais.

Evidencia-se, portanto, o papel fundamental de algumas considerações sobre a questão da atividade docente. Uma prática que não se questiona não evolui, e com o tempo ela se torna ineficiente e, portanto, desnecessária à sociedade – tal como alguns ofícios que não existem mais, seja porque não evoluíram ou porque eles não puderam evoluir. A prática docente deve se levantar algumas questões se ela deseja permanecer no seio das atividades de uma sociedade.

Mas não só a prática docente deve evoluir, mas também quem a exerce: o professor. A prática e pessoa que a exerce são intrinsecamente ligados, e questões sobre um dos dois só podem ser respondidas considerando o outro. Não adianta ser capaz de se precisar o que é a prática docente se quem a pratica permanece na obscurantidade – é a mesma questão de não poder conhecer a arte sem o artista. Deve-se levantar questões sobre quem é o profissional que exerce essa prática para que se possa evoluir não apenas aquele, mas esta também.

O objetivo do presente texto é levantar algumas considerações não só sobre a atividade docente, mas também sobre o profissional que a exerce. Pretende-se iniciar com a tentativa de se obter algumas definições mais básicas para, a partir delas, chegar às considerações sobre a atividade e o profissional. A partir dessas conclusões, se fará uma breve análise relativa à importância do ensino da Filosofia no Ensino Médio e no Ensino Superior.

 

1. O que é ensinar?

 

Nesta parte do texto serão levantadas algumas questões sobre a capacidade humana de aprender e ensinar, analisando como esses conceitos se relacionam e como eles se relacionam com a prática docente e com o professor. No meu entender, um profissional docente que não questione a si mesmo sobre os fundamentos da sua atividade não está realmente apto a exercê-la. Um professor que nunca se questione sobre as práticas inerentes ao seu trabalho não será um professor capaz de ensinar – se ele não sabe o que é ensinar, como ele vai ser capaz de ensinar?

A pergunta mais fundamental (pelo menos no meu entender) relativa à prática docente é justamente "o que é ensinar?". Existem muitas respostas para essa pergunta, passando desde pontos de vista positivistas ("ensinar é preparar o ser humano para a vida em sociedade") até pontos de vista céticos ("não é possível ensinar, logo não tem sentido a pergunta 'o que é ensinar?'") ou pessimistas ("ensinar é formatar as pessoas nos moldes impostos pela sociedade"). Todas essas respostas trazem consigo uma dada concepção de homem, de psicologia e de epistemologia, que pode ser mais ou menos transparente a um ouvinte desavisado – mas que podem modificar toda a estrutura da formulação da Didática. Neste trabalho restringir-se-á as análises a esses três casos limites de possibilidades de respostas, por entender-se que os casos intermediários são formados por partes dos casos limites.

A resposta positivista alinha-se ao Iluminismo e ao naturalismo típicos dos séculos XVIII e XIX. Nessa concepção da prática de ensino o homem possui uma natureza essencial dotada de certas potencialidades que só podem ser desenvolvidas no âmbito da vida social – e para isso serve a prática docente. Por meio do conhecimento e da razão o homem se torna apto à vida social e, portanto, a ser um membro pleno da sociedade em que vive. Ensinar adquire, neste contexto, um caráter extremamente tradicionalista, em que os alunos são simplesmente "esponjas culturais". Para o ponto de vista positivista, ensinar é uma prática por meio da qual se desenvolve as potencialidades do homem, tornando-o um membro competente da sociedade.

O grande ponto negativo dessa resposta é a idealização do ensino praticado. Se os homens têm todos a mesma natureza, eles devem receber o mesmo ensino, independente das questões sociais e econômicas relacionadas não só à prática docente como também ao professor e ao aluno. Isso provoca uma padronização do ensino que desconsidera não apenas o que interessa ao aluno, mas que na maior parte dos casos não vence atingir os alunos – que em sua maioria diferem do modelo idealizado, como acontece com qualquer modelo. O ensino, sob a óptica positivista, desconsidera as diferenças e as particularidades os alunos, e isso propicia um ambiente desagradável para os mesmos.

O ponto de vista cético deriva-se de algumas teses centrais da filosofia analítica e do empirismo lógico do século XX. Ele surge a partir da resposta negativa à questão "é possível atingir o entendimento de uma outra pessoa?", e aplicando os silogismos "se não se pode atingir o entendimento de uma outra pessoa, não se pode atingir o entendimento do aluno", "se não se pode atingir o entendimento do aluno não se pode avaliar o aluno", "se não se pode avaliar o aluno, não há como saber se o aluno aprendeu alguma coisa", "se não há como saber se o aluno aprendeu, a prática docente é destituída de sentido", do que se conclui que "logo não é possível ensinar". É um argumento baseado em um sofisma, mas que ainda assim desperta algum interesse, pois desperta uma reflexão muito crítica acerca do ato de ensinar: será que se pode ensinar algo a alguém?

Outros autores chegam a essa mesma conclusão partindo do cotidiano escolar. Muitos professores em nossos dias sentem-se incapazes de ensinar alguma coisa aos seus alunos simplesmente porque eles não querem aprender o que se ensina – chamando a isso "impossibilidade". Para esses professores, como os alunos não querem aprender torna-se impossível ensinar-lhes algo – não se pode forçar o conhecimento a entrar na cabeça desses alunos, alegariam eles. Os alunos (e, a bem dizer – segundo esses educadores –, qualquer pessoa) aprendem não o que se lhes ensina, mas o que lhes interessa aprender. É claro que rotular essa situação como "impossibilidade" é altamente questionável – ainda mais se adotarmos uma metodologia tradicional na Didática –, mas essa atitude traz a tona uma outra questão que não se revela ao ponto de vista positivista: será que os alunos querem aprender?

É fácil contrapor o ponto de vista cético por uma simples questão pragmática: pergunte ao professor que sustente esse pensamento por que ele continua ensinando. A questão se torna mais interessante quando uma pessoa que não seja professor levante esse questionamento. As duas questões que o ponto de vista cético levantam devem ser consideradas por qualquer um que queira ser um professor, talvez antes mesmo de responderem à primeira pergunta ("o que é ensinar?"). Parece-me fato que não se pode avaliar o entendimento do aluno quanto ao que foi ensinado a ele, visto que não se pode atingir o entendimento do mesmo – apenas o que ele demonstra entender. Mas nada impede que se tente ensinar alguma coisa a alguém, mesmo que não se possa ter certeza se a pessoa entendeu algo do que lhe foi ensinado – os professores da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro que o digam. Quanto à questão dos alunos quererem aprender ou não, não penso que aprender seja um processo que dependa da vontade de aprender – embora funcionem muito melhor se essa vontade existir. Aprendemos muitas coisas pelo simples convívio social, mesmo que não queiramos aprender tais coisas. Desse fato eu concluo que, embora ajude, não é necessário haver a vontade, por parte do aluno, de aprender.

O ponto de vista pessimista é herdeiro do marxismo e da visão histórica dessa corrente filosófico-metodológica. No contexto de uma sociedade dividida em classes e movida pela luta destas, torna-se necessário que cada classe lance mão de todas as táticas necessárias para prevalecer sobre as demais. Isso significa que a classe dominante está em franca vantagem, pois ela dispõe de todos os meios de produção e do controle do sistema político, legal e jurídico, bem como controle dos sistemas de comunicação de massa e outras estruturas sociais que lhes permitem impor sua ideologia – e entre essas estruturas está o ensino. Por meio do ensino a classe dominante prepara os novos membros da sociedade da maneira que mais lhe interessa, efetivamente modelando esses novos membros para que se tornem mais eficientes dentro das necessidades da classe dominante. Isso significa, na prática, que o ensino é a maneira pela qual se formatam os novos membros da sociedade para servirem aos interesses da classe dominante.

A questão que surge neste momento do texto é: ensinar é mesmo apenas isso, quer dizer, ensinar é apenas formatar os futuros membros da sociedade? Uma saída proposta pelos defensores desse ponto de vista é ensinar tem que ser o processo por meio do qual as classes dominadas conseguiriam todo o instrumental teórico para revolucionar o estado de coisas social, mas a isso eu aponho a pergunta: "isso não provocaria uma simples mudança da classe dominante, e nada mais?". Parece-me que o grande problema desse ponto de vista é justamente propor uma revolução que não revoluciona nada, apenas altera os papéis de dominador e dominado. Simplesmente permitir que as classes dominadas tenham condições de substituir a classe dominante é alterar quem manda e quem obedece – tal como se verificou na União Soviética. Essa idéia de revolução permanente pode até agradar aos marxistas de plantão, mas sua aplicação na sociedade com certeza estaria fadada ao fracasso – nada se estabelece em situações em que haja conflito.

A partir dessas curtas análises arrisco esboçar um conceito de ensino – uma resposta para a pergunta proposta no início desta parte do texto: "o que é ensinar?". Parece-me inegável que a prática docente visa preparar o aluno para alguma coisa, ainda que essa coisa possa parecer obscura ou tenebrosa se não adotarmos um ponto de vista positivista. Ao mesmo tempo, percebe-se no ensino um interesse na manutenção da sociedade tal como ela é – e isso implica tanto na transmissão de conhecimentos quanto em alguma espécie de formatação dos novos membros da sociedade. No entanto, essa formatação diz respeito somente ao preparo para a vida social no tocante ao ensino sistemático. E as questões que o ponto de vista cético levanta são importantes, pois elas permitem ao professor se situar melhor dentro de suas próprias concepções. Portanto, ensinar é, no meu entender, transmitir o instrumental teórico necessário tanto para a manutenção da sociedade quanto para a adequação do indivíduo à sociedade.

 

2. O que é o professor?

 

Com base na resposta dada à pergunta "o que é ensinar?", podemos tentar esboçar uma resposta a essa pergunta – o que é o professor? É muito fácil – e por isso mesmo muito tentador – querer fazer uma identidade entre professor e ensinar, afirmando que "professor é aquele que ensina", mas isso, além de ser superficial, não compreende todo o espectro da definição da atividade docente. Essa simples definição seria deficiente por dois motivos simples: nem todo aquele que ensina é professor e o professor não apenas ensina. Com efeito, a sociedade é repleta de situações em que existe uma pessoa que ensina algo para alguém – mas apenas em alguns desses casos o que ensina é chamado professor. Uma criança aprendendo a falar dificilmente o fará sob supervisão de um professor, mas de seus pais, ou então dificilmente uma pessoa precisa de um professor para saber como se comportar em alguns ambientes. Ao mesmo tempo o professor não ensina apenas, mas também cumpre outros papéis que serão vistos mais à frente.

Mas ainda não se chegou a uma resposta para a pergunta "o que é o professor?" – para ninguém se sentir ofendido, pode se ler a pergunta como "o que define o professor?". Parece-me que o professor é aquele que ensina, mas com certeza não é apenas isso. O professor também educa seus alunos, transmitindo-lhe lições informais sobre como viver em sociedade – mas esse não é um papel exclusivo do professor: é um papel de todos os membros da sociedade. E nesse sentido – ser um educador – o professor é um dos exemplos nos quais os alunos podem vir a se influenciar para a formação do caráter, gostos e personalidades. Isso mostra a responsabilidade inerente à atividade docente – formar os futuros membros da sociedade. Portanto, podemos ficar com uma definição – talvez provisória – de professor: aquele que ensina e educa.

Sendo assim, quais as virtudes que um professor deve possuir para melhor realizar as atividades referentes à prática docente? Essa pergunta conduz a um campo muito mais polêmico do que a pergunta-tema da parte anterior deste escrito, "o que é ensinar?", visto que definições de pessoas são terras de ninguém – todos estão certos e todos estão errados. Quando se fala em virtudes a discussão simplesmente implode, impossibilitando qualquer conceituação em termos de "certo" ou "errado". Cada pessoa que pensa sobre o assunto parece ter uma opinião diferente sobre isso, e essas respostas podem modelar totalmente a Didática a ser proposta pelo pensador em questão.

Vou recorrer a duas situações extremas – o professor tradicional e o professor libertário – por compreender que qualquer variante a essas duas alternativas difere das mesmas apenas pela dosagem dos elementos pertinentes. Um professor tradicional acena como virtudes saber impor a disciplina e a autoridade sobre a turma, o domínio dos métodos didáticos tradicionais (geralmente positivistas ou, no caso do Brasil, escolanovistas), o objetivismo, formalismo e hierarquia. Suas aulas tendem a ser no tradicional esquema "eu-falo-você-escuta", e muitos têm como grande dificuldade ter sua autoridade questionada – independentemente de como concebam autoridade. Já o professor libertário pode ter suas virtudes definidas por oposição ao professor tradicional, e costumam se ver mais como ajudantes do aprendizado do que formadores de opinião.

Cada definição de professor adequa-se mais a uma forma de ver a questão do ensino. Enquanto o professor tradicional tende a ver o ensino por um ponto de vista positivista, o professor libertário define o ensino pelo ponto de vista pessimista mas concentra seus esforços para desvincular o ensino de sua função formatadora. Existem méritos nas duas definições de ensino, e isso é inegável. Mesmo o mais radical dos professores libertários deve dar o braço a torcer e afirmar que o professor tradicional atinge os objetivos a que se propõe atingir, e o professor tradicional deveria reconhecer que os alunos de um professor libertário são muito mais criativos e independentes do que seus alunos.

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