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sábado, 28 de maio de 2011

A concepção de pessoa como indivíduo em Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes

A concepção de pessoa como indivíduo em Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes

Autor: Luís Fernando Carvalho Cavalheiro (contatoalunos@profcavalheiro.com)
Licenciado em Filosofia pela UERJ

Introdução


O fim da Idade Média trouxe consigo novas formas de examinar antigas questões e novas concepções de mundo que encontraram acabamento ao longo dos anos da chamada Idade Moderna. Muitos fatos importantes aconteceram nesta época, como as grandes navegações, o Renascimento, a Reforma Protestante, a formação das principais monarquias nacionais, e é defensável atribuir essas mudanças a uma nova postura filosófica, a uma mudança nos paradigmas aceitos durante o período anterior. Algumas mudanças foram mais lentas que outras, assim como as regiões mais periféricas não experimentaram o sabor dos novos tempos (vide, como exemplo, que a Rússia tornou-se uma nação considerada moderna apenas sob Pedro II, no século XVIII), mas o período foi marcante para a história do pensamento ocidental.

Uma dessas mudanças de paradigma foi com relação ao homem. Antes encarado como criatura dependente de seu Criador celestial, a Idade Moderna trará a "emancipação" do homem na medida em que cada vez mais vai trazê-lo ao centro de suas teorias e de seus paradigmas e colocá-lo como fator fundamental. Haja vista o cogito cartesiano, que subordina a existência de todas as coisas – inclusive a de Deus – ao "eu penso" do indivíduo. Mas é na filosofia política que a nova concepção de homem se mostra mais evidente. Pela primeira vez em séculos, o homem é analisado não como objeto de sua crença religiosa, tal como fez, entre outros, São Tomás de Aquino – isto é, não como um ser criado para ser naturalmente bom mas que perdeu inúmeras condições extremamente vantajosas por um deslize de seu progenitor – mas a partir de sua vida em contato com outros homem. A mudança se percebe até mesmo no linguajar empregado pelos pensadores, que passam a fazer uso das palavras cidadão e indivíduo, querendo indicar o vínculo intrínseco que o homem possui com a sociedade à qual pertence ou afirmar a singularidade de cada homem em comparação aos outros que são meramente seus semelhantes.

Apesar de o período ter sido bastante generoso com relação ao número de filósofos que se ocuparam de questões relacionadas ao homem, suas sociedades e seus Estados, neste escrito abordaremos os dois autores trabalhados ao longo do curso de "História da Filosofia Moderna II" ministrado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro pelo professor doutor Marcelo de Araújo: Thomas Hobbes e Nicolau Maquiavel. Será analisada que concepção de pessoa como indivíduo que pode ser extraída das mais conhecidas obras de cada um destes autores: O Príncipe, de Maquiavel; e Leviatã, de Hobbes. Após a apresentação da concepção de pessoa como indivíduo em cada autor, elas serão comparadas em uma conclusão de caráter pessoal sobre o tema.


O Príncipe: antes parecer justo sem o ser que prejudicar-se por ser justo


Nicolau Maquiavel escreveu O Prínicipe para Lourenço de Médici, chamado pela História de "o Magnífico", e o ofereceu como sendo um curso rápido sobre como se deve governar qualquer território. Ele analisa diversos exemplos, tanto históricos quanto atuais na época, acrescentando sempre sua opinião sobre cada fato observado. Não sem razão, O Príncipe é considerado por muitos como sendo até hoje um excelente manual que ensina como governar, e mais de um político famoso já admitiu ter o livro em sua cabeceira.

Mas o que nos interessa aqui não são diretamente as regras que Maquiavel estabeleceu, mas a concepção de pessoa que transparece ao longo da obra. Ele não se ocupa em escrever parágrafos ou capítulos dizendo o que é o homem, nem como entendê-lo – pelo contrário, ele assume isso como um fato já dado de antemão e muito bem conhecido pelo seu leitor. A maneira como ele compreende o indivíduo é bastante peculiar, e, ouso dizer, resultado direto tanto de sua "grande e contínua má sorte"1 quanto da situação política da Itália naquele período histórico. Talvez a visão de Maquiavel sobre o que é o indivíduo tenha contribuído, mais do que os conselhos dados ao governante ao longo da obra, para a caracterização do adjetivo "maquiavélico", presente em diversos idiomas com o significado de "inescrupuloso".

A partir da leitura de O Príncipe podemos admitir que Maquiavel figura o homem como mesquinho, covarde, egoísta e mau. Em vários trechos ele recomenda expressamente ao príncipe que é preferível parecer virtuoso a sê-lo, caso o exercício da virtude seja prejudicial ou oneroso a este. Em outras passagens, ele considera o homem naturalmente inclinado para o mau, e por isso mesmo praticar as virtudes aclamadas como boas por todos os homens fatalmente conduziria à ruína qualquer um que o fizesse. Percebe-se aqui uma retomada de algumas idéias dos sofistas e estóicas sobre a natureza humana, pois se abandona a concepção cristã de homem (ser criado à imagem e semelhança de Deus, portanto naturalmente bom e inclinado às boas virtudes) em favor de uma visão menos idílica: o homem é mesquinho e mau, e elogia a virtude apenas para que outros a pratiquem e se arruínem. Mas essas conclusões são bastante influenciadas pelas análises de Maquiavel, que demonstram como a prática de determinadas virtudes pode se voltar contra o príncipe, e que por isso mesmo é melhor parecer possuí-las sem de fato o fazer.

A partir dessa concepção de natureza humana podemos entender agora a visão de indivíduo empregada por Maquiavel em O Príncipe – ou melhor, a visão de cidadão, que é a palavra usada por ele ao longo da obra. Sendo o cidadão naturalmente egoísta e voltado para seus interesses particulares, o príncipe se quiser governar precisa ganhar os favores de seus súditos – isto é, dos cidadãos subordinados a ele – ou enfrentará conseqüências nada agradáveis. Ou seja: o poder do príncipe deixou de ter origem divina, como defenderam os filósofos medievais, mas advém dos cidadãos subordinados a ele, que podem destroná-lo ou chamar um poder estrangeiro para fazê-lo caso não se sinta satisfeito com o seu governo. O príncipe possui poder para governar apenas enquanto seus súditos fizerem a concessão de tal poder para ele – ou melhor: o cidadão é, em última análise, a fonte do poder do príncipe. Maquiavel não explica como se dá essa concessão, nem mesmo reconhece essa transferência de poder como sendo uma concessão: na verdade, ele afirma que enquanto os súditos sustentarem o poder do príncipe este será imorredouro – o vocabulário contratualista deverá esperar até Thomas Hobbes para consolidar-se.

O cidadão configura-se ainda como indivíduo dotado de direitos, assegurados a ele pelas leis, e em mais este ponto o príncipe deve ser cauteloso: leis injustas podem provocar uma reação por parte de seus súditos proporcional à injustiça da lei. Para Maquiavel isso é mais evidente nas repúblicas do que nos principados, mas mesmo um príncipe pode ter que encarar uma rebelião se seus súditos não se sentirem satisfeitos. O príncipe não governa senão pelo favor ou pelo temor de seus súditos, e deve ter isso sempre em mente – mais do que isso: Maquiavel deixa subentendido, em uma leitura possível de sua obra, que é preciso temer os súditos. Tudo fica mais complexo ainda se considerarmos que para o autor governar é ter que administrar os interesses individuais de cada cidadão, que nem sempre são os mesmos.

Em resumo: o cidadão em O Príncipe é um indivíduo mesquinho, egoísta e covarde, que concede ao príncipe o poder para governar enquanto lhe convier, e a qualquer momento em que sinta que seus interesses estejam sendo prejudicados o cidadão pode retirar esse apoio ao príncipe. O cidadão é, portanto, a base e o sustentáculo do poder do príncipe, que não poderá governar de forma alguma – a não ser muito dispendiosamente – sem o apoio deles. Sem o cidadão não há o principado, visto que príncipe nenhum durará em um território que lhe seja hostil a não ser pelo uso da força.


Leviatã: o homem é o lobo do homem


Thomas Hobbes escreveu o Leviatã como sendo um tratado de Filosofia em geral, desde as instâncias da razão até a teologia. Assim sendo, é natural que ele tenha se dedicado às questões relacionadas ao Estado, ao homem enquanto pertencente a uma sociedade e por que o soberano governa. Hoje em dia seu livro é reconhecido sobretudo por esta parte, já que ele foi o primeiro a falar abertamente em termos de um contrato social, um acordo entre indivíduos visando a obtenção dos objetos de desejo de cada um deles, e também por causa da visão extremamente pessimista de natureza humana que ele adotou.

Grande parte do reconhecimento de Hobbes se deve à metodologia empregada para explicar a origem do Estado e da sociedade: ele faz uma demonstração por indução sobre o indivíduo. Para ele, anteriormente ao Estado e à sociedade existem os indivíduos, sem nenhuma ligação entre si, dotados apenas de um direito, de fazer o que for preciso para manterem-se vivos, e obrigados a apenas uma lei, a de não fazer nada que prejudique seu bem-estar. Nestas condições é fácil imaginar como a vida de cada indivíduo deve ser penosa: ele deve fazer, construir ou criar tudo aquilo que for necessário para a sua sobrevivência e deve ainda se precaver do assalto ou de agressões de outros indivíduos que intentem lhe tomar as posses. É um estado de desconfiança generalizada, pois se qualquer um pode fazer o que for preciso para sobreviver isso pode incluir matar ou escravizar, entre outros fins menos agradáveis.

É interessante notar como Hobbes considera os indivíduos dotados das mesmas capacidades, ainda que ligeiramente diferentes entre si. Usando o exemplo do qual ele se vale no capítulo XIII do Leviatã, um homem mais fraco pode matar um homem mais forte se para isso recorrer a expedientes como a traição, a trapaça, a maquinação, etc. Os homens são iguais em potência (para usar um termo escolástico que, ainda que não apareça neste trecho da obra de Hobbes, serve muito bem), limitados todos pela mesma lei e dotados todos do mesmo direito. Ao mesmo tempo os homens são iguais nas fraquezas, pois se um indivíduo mais fraco pode matar um mais forte, o mais forte pode matar o mais fraco. Essa igualdade é importante na teoria hobbesiana, pois se porventura existisse um homem superior aos demais ele seria por natureza o senhor de todos os demais homens.

Mas um estado de coisas como esse, ao qual Hobbes chama de estado de natureza, não pode subsistir para sempre. Os indivíduos vivendo nesta guerra de todos contra todos percebem facilmente que se trata de uma situação com riscos em potencial bastante iminentes: basta eu desenvolver alguma coisa que me facilite minimamente a vida para que eu me torne alvo de agressores. É claro que aos homens interessa poder ser o agressor mas ninguém quer ser o agredido, e por isso surge a necessidade de alguma espécie de garantia que impeça agressões aos indivíduos. E é por esse simples egoísmo – não querer ser agredido – que os indivíduos chegam à conclusão de que precisam abdicar de parte de sua liberdade em agredir: se ninguém for o agressor, ninguém será agredido. No entanto é preciso haver uma instância superior que garanta a existência e o funcionamento de um contrato (posto que é mútuo, conforme Hobbes expõe no capítulo XIV da obra) dessa natureza, e para isso é criado o Estado: um poder acima dos indivíduos cuja função é garantir o bem-estar dos indivíduos que se tornaram seus cidadãos em detrimento de suas liberdades individuais2.

É interessante notar como os indivíduos abrem mão de parte de seu direito (agredir outros indivíduos) em troca da auto-preservação (não poder ser agredido por outros indivíduos), e como o Estado tem uma origem tão egoísta. Pois é do egoísmo e do medo dos indivíduos que surge a disposição de abandonar parte de seu direito, e é desse abandono que surge o Estado. Mesmo que não houvesse tal disposição seria vantajoso para os indivíduos firmarem o contrato social entre si, como mostram as diversas variantes deste dilema nas Teorias dos Jogos – notadamente o Dilema dos Prisioneiros. Ou seja: mesmo que não houvesse o medo de ser agredido, ainda seria melhor negócio aderir ao contrato social e fazer parte de uma estrutura capaz de prover o indivíduo daquilo que ele não é capaz de produzir sozinho.

A teoria contratualista depende da suposta igualdade entre os homens. Se porventura existisse um homem em algum aspecto superior aos demais ele se imporia sobre os outros homens ainda no estado de natureza e governaria em função deste aspecto em que é superior aos demais. Por exemplo, se existisse um homem tal que ninguém pudesse matá-lo e que facilmente matasse os outros homens, ele não iria participar voluntariamente do contrato, já que ele está em nítida vantagem sobre os demais e, portanto, pode dominá-los facilmente. Mas como não há meio de forçá-lo a aderir ao contrato, temos que ele subjugaria os demais homens antes mesmo que o contrato fosse proposto e se intitularia soberano sobre os demais homens.

Portanto, para Hobbes o homem é naturalmente egoísta e mau, pois depende dessas duas características para sobreviver: a primeira para não fazer nada contra seu bem-estar, e a segunda para fazer todo o necessário para garantir sua vida. Mas é graças a essas características que os indivíduos acabam se organizando em Estados: pelo egoísmo de não poder mais ser vítima de agressões e pela maldade de impedir os outros indivíduos de cometê-las.


Conclusão


Não é difícil perceber que os dois autores adotaram concepções bastante similares sobre o que é o indivíduo: um ser que, por seu egoísmo e maldade, acaba se tornando o sustentáculo do Estado do qual é súdito. Seja por sustentar ou apoiar seu príncipe, seja por abrir mão de parte de seu poder para que outros tenham que abrir mão de igual parcela de poder, os indivíduos aparecem sempre como sendo iguais tanto nas qualidades quanto nas fraquezas e que por isso mesmo não trabalhariam em conjunto se não houvesse um motivo superior para tal. Para Maquiavel, esse motivo superior seria o poder do príncipe, que todos os cidadãos apóiam e sustentam; já para Hobbes esse motivo é a sobrevivência, pois é esta quem gera a necessidade de um Estado.

O indivíduo nas duas obras aparece como um sujeito bastante peculiar, posto que possui grandes poderes dos quais os Estados em que vivem são derivados. Sem a anuência e o assentimento dele, o príncipe não poderá governar sem temer uma revolução ou uma traição. Sem o cumprimento do contrato por parte do indivíduo, toda a teoria hobbesiana colapsaria, e o Estado se mostraria um mau negócio para os membros que permanecessem fiéis ao acordo. Ao mesmo tempo, o indivíduo está sujeito aos poderes que se derivaram de seu poder: enquanto aceito como tal, o príncipe possui liberdade para governar; e pelo simples fato de viver em um Estado o indivíduo abre mão de uma parte de seu direito em troca da segurança e das comodidades existentes na vida em sociedade.

Independentemente das diferenças, trata-se de duas concepções de indivíduo que divergem bastante das que vigoravam na Idade Média. Sob novos paradigmas pôde a sociedade ocidental encontrar novos rumos e avançar rumo à era em que estamos agora.



1 Como ele confessou a Lourenço de Médici na carta-introdução de O Príncipe.

2 Esta é uma descrição bastante simplista da teoria hobbesiana do contrato social, mas contém todos os elementos necessários para visualizarmos o papel que o indivíduo apresenta na gênese do Estado – portanto, servirá perfeitamente para os propósitos deste escrito.

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