Manual de Instruções

Caros leitores, após muito tempo decidi quebrar alguns de meus votos de silêncio. Um deles inclui voltar a escrever por aqui. O outro, falar de política. Tarja Preta versão 3.0, divirtam-se!
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sexta-feira, 8 de junho de 2007

Enchendo o Hegel de cerveja

Caros amigos e inexistentes leitores deste pequeno espaço virtual do manicômio da vida, eu gostaria de compartilhar com vocês um fenômeno que me atravessou hoje, e que serviu para confirmar uma antiga tese de minha carreira filosófica: para falar de Hegel, somente enchendo o Hegel de cerveja.
Tudo começou quando uma amiga minha me pede ajuda para entender Hegel; segundo ela, ninguém para quem ela pedira antes de mim se dispôs a ajudar. Eu nunca fui muito entendido nas teorias desse cara, e sinceramente não li dele nada que não fosse a Fenomenologia do Espírito, mas como qualquer um que vê Hegel pela frente vê a questão do Absoluto em primeiro lugar, eu achei que seria fácil até falar algumas coisinhas. Em parte (quer dizer, na maior parte) eu aceitei ajudar porque fiquei com pena dela, ainda que eu diga que não se deve ter pena de ninguém, visto que os senhores são dignos de consideração e os escravos, de orientação; simplesmente não se deve culpar alguém por causa do estado de coisas em que esse alguém esteja inserido. Pena realmente não é uma boa palavra; consideração soa bem melhor, e é mais consonante com o que eu senti no maldito momento em que eu disse "sim". Como consolo, esse sim não foi dito em um contexto de casamento, e por isso suas conseqüências não podem ser tão definitivas quanto. Simplesmente eu pedi que ela me arranjasse uma cópia do texto que a professora estava trabalhando que eu leria e daria uma luz sobre o assunto.
Vocês com certeza são capazes de imaginar como eu gelei quando, no lugar da Fenomenologia, ela jogou, alguns dias depois, na minha frente a Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio, volume II. Eu nem sabia que esse livro existia, para ser sincero com todos vocês. Aí eu caí em mim, e me certifiquei mentalmente: "é, você fez merda". Eu tive o estado de espírito firme o bastante para perguntar: "mas o que vocês estão vendo de Hegel?"
- O conceito de espaço e de tempo, filosofia da natureza.
"Fudeu de vez", eu pensei. "Eu nunca estudei isso em Hegel na minha vida." Só que, uma vez que promessa é dívida, eu perguntei quando poderíamos marcar para discutirmos esses conceitos (e mentalmente pedindo a quem quisesse me ouvir para que ela marcasse uma data muito ao longe e esquecesse posteriormente). Era uma terça-feira; ela marca na sexta-feira da mesma semana. "Bonito, doutor", eu pensei, "é por causa disso que você se fode sem nem mesmo sentir." Enfim, eu cometi um ato sacrílego que eu nunca tinha feito na minha vida: eu estudei. Perdoai-me, oh Mãe Vagabundagem, oh Pai Preguiça, porque eu pequei diante de vós! Mas promessa é dívida, então vamos nós. E para uma coisa essa leitura me adiantou: encontrei argumentos para dizer porque Hegel não diz coisa com coisa! É realmente interessante ver como alguém gasta tanto papel para dizer alguma coisa que muito bem caberia em uma pichação de muro - e gasta papel para dizer coisas que são completamente destituídas de sentido. Realmente, os problemas tradicionalmente filosóficos não são de fatos problemas filosóficos, eles nascem da má-compreensão da lógica de nossa linguagem...
Mas enfim, chegando o dia fatídico eu vou para a casa da madame já no clima de falar e ser o que tiver que ser. Não vou dizer que entendi aquelas vinte páginas que eu li e que não valem duas, mas eu conseguiria falar um pouquinho sobre elas e passar algum conteúdo para essa minha amiga - em parte porque Hegel é um Platão mal re-editado. Mas eu não fui muito alegre, não, o que eu entendo como uma reação até que muito natural visto que eu estava indo para a casa de alguém para explicar a essa pessoa uma coisa que eu mesmo não sabia muito bem. Fui lendo um dos meus livros prediletos e um dos que eu considero mais simples na filosofia, a Crítica da Razão Pura (ou CRP) do Kant - um dos meus livros de cabeceira, ao lado do Tractatus e do Sofista. Enfim, cheguei na casa da garota querendo vomitar o que eu não tinha no estômago (efeito colateral de ler em ônibus, isso sempre me acontece) e sem saber o que dizer.
Mas chegando lá ela me oferece aquilo que seria a solução para os meus problemas: uma garrafa de cerveja. Isso mesmo: cerva, cana, álcool, goró, gelo, etc. Eu me lembrei na hora da minha velha teoria, a Teoria da Alcoolidade Filosófica Geral e as Teorias da Alcoolidade Filosóficas Restritas: a geral reza que a boa filosofia é produzida nos bares quando os filósofos ficam sob a inspiração divina de Dionísio; e as restritas rezam especificamente sobre cada filósofo - Hegel, por exemplo, tem duas Teorias da Alcoolidade Restitas associadas a ele: a primeira diz que Hegel só pode ser entendido por quem esteja pleno de Dionísio em si; a segunda fala a mesma coisa acerca do Absoluto de Hegel. Enfim, eu sabia que de cara limpa eu não iria falar coisa que prestasse, então eu me agarrei ao ouro líquido que ela me ofereceu e comecei a encher o Hegel de cerveja para falar de Hegel.
Mas a coisa começou a fluir bem conforme a cerveja fluía para o Hegel: eu comecei devagar, fazendo umas pontes entre Hegel e Platão que são necessárias para entender a metafísica desse alemão safado filho de uma prostituta barata que levou calote de mendigo desdentado e broxa. Não me peçam para reproduzir aqui o que eu disse: eu estava servindo apenas como um daimon a serviço do grande Dionísio, que falava pela minha boca - só assim eu consigo explicar como eu disse algo com sentido sobre a filosofia da natureza do Hegel e que ela tenha entendido alguma coisa. A coisa fluiu tão bem que conseguimos avançar até mesmo para os conceitos de espaço e tempo para o Hegel e, acreditem se quiserem, Dionísio usou da minha boca para fazer parecer que esses conceitos fossem as coisas mais simples do mundo - tipo receita de bolo. Adorei isso - mas tudo isso aconteceu somente porque o grande Dionísio assim me inspirou a dizer.
[Que papo de louco, esse de inspiração divina. Mas na falta de explicação melhor serve esta.]
O resumo da ária, senhores: eu expliquei uma coisa que eu nunca tinha visto antes para uma pessoa, que entendeu o que eu disse e que garante que após o que eu disse as aulas da professora passaram a fazer algum sentido. Bizarro, mas é a prova necessária e suficiente de que para falar de Hegel, somente enchendo o Hegel de cerveja.

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