Manual de Instruções

Caros leitores, após muito tempo decidi quebrar alguns de meus votos de silêncio. Um deles inclui voltar a escrever por aqui. O outro, falar de política. Tarja Preta versão 3.0, divirtam-se!
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terça-feira, 28 de setembro de 2010

A Triste História da Chacina da Praça do Gramacho

Caro Leitor

O texto de hoje bem poderia ser uma crônica, se não pertencesse aos meandros mais negros e polutos da realidade histórica na qual está inserida a mais vil e desprezível das criaturas: o homem. Estamos há muito (desde o Éden, eu diria) afastados da imputabilidade que abençoa os outros animais, tão superiores a nós porque agem pela necessidade de agir. Quando nos afastamos da necessidade de agir, que é o movimento que o Absoluto imprime à todos os seres (que nada mais são que extensão de Seu próprio corpo), entramos nos reinos do livre-arbítrio, cujo rei e senhor é a astúcia e a velhacaria e os mandamentos, a enganação e a ladinagem.
Para aqueles entre os meus leitores que não possuem a tão alta honra de conhecer a Baixada Fluminense tão bem quanto a própria estante de livros (e posso dizer que a Baixada é tão vasta e diversa quanto a minha biblioteca particular), existe na cidade de Duque de Caxias um bairro chamado Gramacho, a 10 minutos de ônibus ou 5 minutos de trem do centro comercial daquela cidade. Não confundir com Jardim Gramacho, bairro do mesmo município e que dista daquele cerca de 20 minutos de viagem de ônibus: Gramacho possui uma estação de trem, um dos terminais ferroviários da linha Central-Saracuruna. Ao redor da estação de trem e da Praça do Gramacho, localizada em frente ao lado oeste da estação, existe um pequeno centro comercial, com várias lojas, duas farmácias, uma padaria que abre às quatro horas da manhã, dois mercados e duas agências bancárias, o que confere ares de pequeno burgo a horas de qualquer grande centro urbano.
Ainda que muitos dos senhores vivam em apartamentos, acredito que todos concordariam se eu lhes dissesse que o grande destaque do bairro era sua praça. Tal como uma pequena praça de cidade do interior, a Praça do Gramacho era adornada por várias árvores frondosas, nodosas e simpaticamente retorcidas, e em seus galhos inúmeros passarinhos aninhavam-se para dormir e deles se espalhavam em franca revoada tão logo o sol nascia. As árvores espalhavam generosa sombra, e mesmo sob o alto sol do meio-dia havia um certo nimbo esverdeado da luz filtrada pelas folhas, dando a sensação de se estar em uma floresta a menos de dois minutos de caminhada de uma estação de trem, ou na varanda do sítio daquela avó que mora bem para o interior de São Paulo que após Monteiro Lobato todos nós gostaríamos de ter.
Era de um regalo indescritível acordar às cinco da manhã e ir pegar o trem na estação de Gramacho apenas para passar por entre as árvores e escutar o canto alegre dos pássaros saudando o alvorecer de um novo sol, de um novo dia. E toda a fadiga do dia, todo o fástio, todo o peso de uma longa jornada era exorcizado pelo canto destes pequenos Filhos do Altíssimo ao se recolher para o justo sono tão logo o sol se punha. Um espetáculo sublime, que a alma embrutecida do homem da cidade é incapaz de aproveitar em toda a sua integridade, incapaz de apreender em toda a sua majestade. E as canções ali derramadas pelos passarinhos sem nada esperar em troca eram bênçãos vindas de um poder muito superior às nossas misérias mortais.
Muitas vezes me vi cancelando compromissos ou acordando muito mais cedo do que a saúde me permitiria normalmente apenas para assistir a Revoada de Saudação ao Sol, fresco do início do dia, ou acompanhar a Canção Vespertina, solene e com a tristeza que apenas o Sublime em toda sua plenitude é capaz de suscitar, tristeza essa não de pesar, mas de profunda reverência e gratidão, uma adoração ao mais profundo e primitivo (não no sentido de atrasado, mas no sentido de primeiro) Deus, que é o Absoluto Pai Criador de Todas as Coisas, Aquele que É mesmo além do Tempo e do Espaço. Ali, com a alma grave dos poetas que mais alto se alçaram nos caminhos do Amor conforme revelados por Diotima de Mantinéia, muitas vezes chorei sem lágrimas ou sofrer, mas altivo e sorrindo, cantando sem emitir som, em um divino estado ébrio que apenas a contemplação do Uno, do qual Eu Sou é a Idéia Magna, propicia e desconhecido daqueles que jamais experimentaram um estado de consciência alterado sem jamais consumir substâncias que fazem isso. Muitas vezes me vi prometendo a mim mesmo escrever um poema sobre a tarde passada ali, ou prometendo aos meus entes queridos apresentar a eles a Canção Vespertina dos pássaros, pois como essa música nenhum outro ser, real ou não, já cantou.
Espero que você, caro leitor, seja uma pessoa atenta e tenha percebido que todos os verbos descrevendo a praça estavam em flexões que indicam tempo passado. Pois essa praça não existe mais.
A criatura mais vil, o homem, no fundo de seu âmago podre e ressequido sabe que a natureza é uma prova material de como ele se afastou da Unidade com o Altíssimo, e por isso mesmo atenta contra ela com todas as suas forças. Poucos são aqueles que tentam caminhar de volta à Morada do Absoluto e reintegrar-se a Ele na primitiva Unidade em que todos estávamos antes da Queda. Pois se somos Seus Filhos e conhecemos Sua Luz, dela nos afastamos pelo peso de nossos crimes, da nossa arrogância, de nossa astúcia. Éden, Atlântida, Númenor, Valinor, Pindorama... nomes diferentes para a mesma coisa: o Paraíso, que é a Unidade, do qual caímos por obra de nossa própria maldade, do qual o sangue em nossas mãos nos baniu.
Pois o homem teceu seus ardis, e em nome de seus deuses mortos (aos quais chamam por nomes como "progresso", "civilização", "urbanismo", mas em nada diferem do maligno deus Tash descrito por C. S. Lewis em Crônicas de Nárnia) avançou contra aquele templo intocado da Paz dos Dias Antigos. Por obra de um das igrejas desses deuses mortos, chamada "Prefeitura de Duque de Caxias", as árvores foram arrancadas e mortas, e os pássaros foram expulsos das moradas que era deles por direito desde antes da Aurora dos Tempos. Muitos ninhos foram desfeitos e muitos ovos foram quebrados. No lugar das árvores foram plantadas algumas palmeiras, que estão murchando de vergonha por estarem participando do crime, ou, talvez, em reverência às irmãs tão covardemente mortas.
Foi uma verdadeira chacina, que mesmo o mais insensível dos homens mortais, corrompidos por seus deuses mortos, consideraria inaceitável se sua alma não estivesse amortecida pela escravidão à qual o homem da cidade é submetido e obrigado a chamar de vida. Muitas vidas irmãs ali encontraram seu fim, no altar dos sacrifícios aos deuses mortos do homem da cidade. Muito sangue foi derramado, e apenas com o preço do próprio sangue o perpetrador da chacina se redimirá dos seus crimes. Nada justifica um crime tão brutal, pois foram poemas que morreram, poemas que se apresentavam aos nossos olhos como árvores com passarinhos a cantar.

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