Manual de Instruções

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quarta-feira, 11 de abril de 2007

O eu-infantil e o eu-adulto: como reaprender a ser quem se é

"A Razão é um grande empecilho para os homens, pois os cega para coisas tão simples que mesmo uma criança consegue entender"
Sto. Agostinho


Não resisti e acabei citando essa passagem primorosa de Santo Agostinho. É válido dizer, com todas as letras, que o homem, valendo-se da razão, conseguiu atingir conhecimentos espantosos e construir engenhos incríveis: hoje conhecemos nosso código de DNA (o que me espanta, visto que geneticamente somos mais parecidos com ratos do que com os chimpanzés), temos satélites geoestacionários capazes de ler o jornal de uma pessoa, e outras maravilhas assim. Mas a razão, e o rigor lógico que ela nos exige, acaba nos cegando para alguns fatos mais simples mas que para os quais não existe demonstração racional. Tem coisa que é porque é, e esse tipo de coisa a Razão jamais vai conseguir atingir. Vou citar um exemplo: Santo Agostinho era um grande filósofo pagão que racionalmente contestava (e ele tinha argumentos bons) coisas como a Santíssima Trindade, a existência de deus, etc. Em um belo dia, ele estava caminhando numa praia e viu um garoto que ia até da beira d'água até um ponto específico, repetindo esse movimento constantemente. Santo Agostinho se aproximou e perguntou ao garoto o que ele estava fazendo. A criança respondeu: "estou tentando encher este buraco na areia com esta concha". Santo Agostinho olhou para o buraco, que tinha mais ou menos seis pés de diâmetro, e olhou para concha, que sumia nas mãos pequeninas do garoto. Surpreso, ele exclama: "Mas você nunca vai conseguir completar sua tarefa. Isso é impossível". A criança responde: "assim o é tentar entender o mistério da Santíssima Trindade. Por que me condenas por tentar encher um buraco com água?"
Exemplo fantástico, na minha opinião. Simplesmente há coisas que a Razão nunca vai atingir entender, pelo menos no estágio em que ela se encontra agora. Não há como racionalmente explicar porque algumas pessoas se sentem como crianças de castigo, outras se sentem como o Unabomber e outras ainda nem se incomodam com o fato de estarem se sentindo isoladas e esquecidas pelo mundo. As pessoas se sentem assim porque se sentem, e para elas esse motivo é necessário e suficiente para se comportarem da maneira como se comportam. Mas a questão é: a maneira como a pessoa se comporta nunca lhe é imposta. Ela pode até aceitar algum padrão comportamental que lhe seja estranho, mesmo que esse padrão lhe seja imposto pela força, mas se a pessoa não quiser aceitá-lo simplesmente não aceita e fica tudo resolvido. Lembre-se da resistência não-violenta que os indianos, liderados pelo Mahatma Mohandas Karamanchand Gandhi, ofereceram à Inglaterra e pergunte-se se eles aceitaram os padrões comportamentais que os britâncos impunham pela força. Isso leva à seguinte conclusão: a pessoa se comporta como quer se comportar, mesmo que esse querer não seja aparentemente uma decisão deliberada e consciente. Ou seja, mesmo que não pareça, a pessoa se comporta tal como ela quer se comportar, seja consciente ou inconscientemente. Quando estamos incomodados por algum comportamento nosso, simplesmente podemos mudar isso.
Vamos ao pulo do gato, agora. Podemos intitular essa parte inicial deste texto como "Curso Prático de Re-educação Comportamental", mas eu abdico dos rótulos - eles calcificam demais um pensamento muito solto e insano como o meu. A questão que eu levanto aqui é: como mudar nosso comportamento perante o mundo. Não há nada de misterioso ou esotérico nisso, e é algo tão simples que por esse motivo passa totalmente desapercebido aos olhos de todos. Vamos às considerações iniciais.

1) A relação eu-outros e o eu-infantil

Com certeza podemos fazer uma classificação muito simples e intuitiva acerca dos objetos que existem no mundo, adotando o observador como referencial: todos os objetos que sejam iguais ao eu ficam em uma classe, e todos os objetos que não sejam iguais ao eu ficam em uma outra classe. É algo simples e intuitivo: mesmo uma criança é capaz de dividir o mundo em eu e os outros - e efetivamente o faz. Qualquer um sabe a diferença entre si mesmo e qualquer coisa que não seja isso. E será com base nessa diferenciação que iniciaremos essa pequena discussão sobre como alterar o próprio comportamento. Aliás, nesta primeira parte a metodologia será partir das constatações de fato para as conclusões, como todo e qualquer estudo sobre a psicologia humana deve ser.
Sabemos desde o berço que existe um mundo exterior ao nosso eu. A criança percebe isso de maneira rudimentar, pois o mundo para ela é muito pequeno: seu berço, sua mãe, seu pai, e outros elementos que ela poderia (pelo menos na maioria dos casos) enumerar nos dedos se soubesse contar. Conforme a criança cresce o mundo dela vai se expandindo, pois ela passa a perceber mais coisas e a acrescentá-las à sua aparência de realidade: os amigos de escola, as pessoas que ela vê nas ruas, as coisas que existem pelo mundo. Nessa hora acontece uma das maiores desgraças que o homem é obrigado a atravessar: a criança passa a se ver obrigada a saber diferenciar-se dos outros, isto é, ela se vê forçada a adotar uma identidade. Digo adotar de maneira bem proposital: a criança forma sobre si uma imagem que é o reflexo daquilo que as outras pessoas vêem nela e para ela dizem. "Você é um bom filho", "você é bonito", "você é uma criança má", e outras frases desse tipo são comuns ao universo da criança e, gradualmente, ajudam-na a compor uma identidade que será adotada. A criança adota uma identidade para si que é reflexo daquilo que os outros pensam sobre ela. E não tem como ser de outra forma, pois uma criança raramente (eu diria impossivelmente se eu não fosse fã da chamada possibilidade mínima) possui o discernimento necessário para ter de si opiniões próprias.
Conforme a criança cresce ela vai tornando a sua aparência de realidade mais complexa: ela acrescenta mais professores e amigos, esportes, namorados, empregos, vestibulares, filhos, fracassos e todas essas mazelas que acompanham o gênero humano desde que este assim o quis. Só que ninguém ensina para ela uma coisinha simples e banal: como criar uma figuração de si mesma, ou seja, como criar uma identidade sem ter que se basear nas figurações que os outros têm sobre ela. Assim sendo, a criança, agora um adulto, não sabe como ver a si mesmo ou, se o faz, não sabe criar a partir dessa auto-visão uma figuração de si mesma e, a partir desta, uma identidade. A criança se define em função do que os outros lhe dizem sobre ela. Um exemplo típico de resposta à pergunta "quem é você?": eu sou Fulano de Tal (um nome que outra pessoa deu para ela), estudei nas escolas X, Y e Z (títulos que outras pessoas deram para o Fulano), sou formado no curso Tal (mais um título), sou amigo de Sicrano e Beltrano, casado com Fulana e pai de Sicrana e Beltrana. Nada nessa resposta diz como Fulano de Tal se vê, mas sim como os outros vêem Fulano de Tal.
Nesse primeiro momento o eu só existe em comparação ao outro e, por causa disso, está sujeito a toda e qualquer coisa que o outro faça ou sofra. Se nos afeiçoamos a uma pessoa, sofremos quando essa pessoa nos destrata. Se nossa auto-figuração inclui um determinado emprego, estaremos desorientados se perdermos esse emprego. Se acontece algo no mundo que não é do nosso agrado, ficamos tristes ou revoltados, conforme for pertinente ao caso. Por isso vou dar o nome de eu-infantil a esse eu que se define sempre em dependência ao outro, tal como uma criança é sempre dependente de um outro ser humano mais velho do que ela. Mas, continuando, nosso eu-infantil nos leva a comportamentos que visam evitar esses sofrimentos, essas perdas, porque sofrimento é justamente isso: nosso eu-infantil sofrer algum abalo inesperado. Ninguém quer sofrer, e essa é a única verdade universal sobre a natureza humana que eu creio existir, e por isso se nosso eu se define em termos do outro vamos buscar algum comportamento que impeça o sofrimento. Em outras palavras, para não sofrer nós nos comportamos da maneira que o outro espera que nos comportemos. Assim aguentamos destratos de um chefe porque não queremos perder um emprego; aguentamos os desaforos de uma pessoa amada porque não queremos deixar de ser amados por essa pessoa; nos comportamos tal como um grupo quer que nos comportemos porque queremos ser aceitos por esse grupo.
Nosso eu-infantil nos leva a fazer coisas que não necessariamente queiramos fazer, e esse é o problema. O outro (agora definido em termos de não-eu) pode nos causar um sofrimento por meio de uma aparente rejeição. Como nosso eu-infantil se define exatamente pelo outro, quando este nos rejeita simplesmente perdemos nossa identidade se esta estiver definida pelo eu-infantil. Nessas horas pensamos que o mundo nos virou as costas, que estamos sendo perseguidos, ou qualquer coisa similar - mas simplesmente porque perdemos o referencial para nossa identidade. Não sabemos mais quem somos, e por isso sofremos muito: nosso eu-infantil sofreu o maior dos abalos possíveis, que é justamente ter sua identidade descaracterizada. A incerteza é um grande mal para a mente humana, e possuir incertezas sobre a própria identidade pode ser um abalo esmagador - basta dizer que muitos tipos de loucura tem como base fundamental uma incerteza muito profunda acerca da própria identidade. Mas sempre haverá incerteza sobre a própria identidade se esta estiver sendo definida pelo eu-infantil, pois nem sempre podemos saber todas as figurações que o outro possui de nós. Portanto, ter uma identidade definida pelo eu-infantil é estar sempre sofrendo.

2) A relação eu-eu e o eu-adulto

O grande problema do eu-infantil, conforme vimos na parte anterior do texto, é se definir em função do outro e, com bases nessas definições precárias, definir a identidade que será adotada pela pessoa. Por causa disso, o eu-infantil é o motivo pelo qual as pessoas sofrem, pois sempre estarão incertas sobre quem elas são de fato. A pergutna que se segue aqui é: será que é possível existir um outro eu que defina de uma maneira diferente a identidade que a pessoa irá adotar? A resposta é sim, existe um outro eu, que por oposição vou chamar de eu-adulto, capaz de definir uma identidade sem apresentar os problemas do eu-infantil. A metodologia desta parte do texto será diferente da metodologia da parte anterior: aqui tratarei o assunto de maneira expositiva-demonstrativa, já que são poucos os exemplos conhecidos pela população em geral de pessoas que possuem um eu-adulto.
Meio que intuitivamente tem-se a idéia de como o eu-adulto surge: quando a pessoa passa a fazer figurações de si mesma e, a partir dessas figurações, define uma identidade que irá adotar. O eu-adulto aparece quando a pessoa passa a olhar para dentro de si mesma e percebe que nada daquilo que sua identidade diz sobre ela ela é de fato. Por exemplo, poucas pessoas podem perceber que outras pessoas são gentis, ainda mais quando a pessoa gentil é tímida. A própria pessoa, no entanto, pode perceber isso se olhar diligentemente para si mesma, para seu interior. Ela então percebe que existe um eu ali, escondido e soterrado pela massa conceitual inútil e morta importada do outro pelo eu-infantil. Quando fazemos a faxina interna abrimos espaço para que esse eu - o eu-adulto - se manifeste e, a partir desse momento, passe a mostrar para nós qual é nossa verdadeira identidade. O eu-adulto não nasce a partir de um construto, um Frankenstein montado pelas peças cadavéricas obtidas junto ao outro, mas ele nasce junto com a pessoa, sendo uma espécie de luz interior que ela possui mas que ninguém a ensina como usar. Na verdade, veremos (se couber no escopo deste texto) que essa luz interior é a centelha divina, o princípio pelo qual todo e qualquer ser está interligado aos demais e por meio do qual os seres podem transcender a mortalidade e tornarem-se deuses.
Como mostrei na parte anterior do texto, o eu-infantil define uma identidade que a pessoa irá adotar a partir das figurações que o outro faz dessa pessoa. O eu-infantil recolherá todas as figurações do outro sobre a pessoa e as guardará dentro da pessoa, para posteriormente separar o que interessa do que não interessa. Com o que interessa o eu-infantil define a identidade a ser adotada pela pessoa, mas ele não descarta as figurações que não o interessa: elas ficam guardadas no interior da pessoa, soterrando o pobre-coitado do eu-adulto. Esse processo começa ainda no berço, pois é fato que bebês reagem mais afetivamente às pessoas que de alguma maneira os agradam, e é um dos motivos pelos quais as pessoas quase sempre nunca encontram seus eus-adultos. Quando chega uma determinada fase da vida, o interior da pessoa está tão atulhado com essas figurações não usadas que simplesmente não tem nem mesmo espaço para mais figurações, que passam a ser armazenadas na identidade da pessoa. É essa a origem de coisas como rancor, inveja, ódio e esses sentimentos tão detestados da boca para fora e tão amados da boca para dentro: eles são detestados porque ninguém os elogia, mas amados por serem cuidadosamente guardados na identidade da pessoa.

Considerando que o eu-adulto é justamente o primeiro item a ocupar esse quartinho de despejo, ele certamente vai estar completamente soterrado e invisível quando a pessoa tem condições de se valer de todas as vantagens que ele tem para oferecer. Muitas pessoas quando atingem a capacidade que dentro delas existe um quartinho de despejo superlotado com coisas que o eu-infantil delas foi juntando ao longo do tempo simplesmente estão tão acomodadas com a identidade que ele as forneceu que nem sequer mexem no quartinho para ver o que tem lá. Outras ainda se interessam em olhar para o quartinho, mas percebem que mexer nele vai dar muito trabalho e, por isso, desistem da tarefa. Outros ainda começam a revirar o quartinho para ver se tem alguma coisa aproveitável nele, mas desistem na primeira dificuldade - geralmente imposta por uma necessidade da identidade adotada em função do eu-infantil. Isso é mais do que natural: o eu-infantil sabe que se o eu-adulto assumir a pessoa vai ser atirado em um lugar muito pior que o quartinho de despejo no qual ele soterrou o eu-adulto. Mas é justamente essa tarefa - esvaziar o quartinho de despejo e encontrar ali o eu-adulto - que qualquer pessoa que queira ser feliz deve realizar, e encontrar o eu-adulto é a tarefa que coroa a senda do Iluminado.
O segredo da felicidade é justamente esse: encarar o quartinho de despejo, lançar fora todas as figurações do outro que o eu-infantil guardou ali e encontrar o eu-adulto. É um processo de auto-análise e auto-reflexão, e pode ser muito complicado para aqueles que não possuam nenhuma familiaridade com o assunto. É um trabalho sobre si mesmo, no sentido de que exige esforço e dedicação para efetuar essa mudança radical sobre si mesmo. É como temperar ferro até que ele se torne aço: você deve trabalhar o ferro incandescente para livrá-lo de todas as suas impurezas até que ele se torne o firme aço. O processo requer esforço, atenção e observação constantes, pois apenas dessa forma se consegue atingir as camadas mais antigas de sujeiras e trastes do quartinho de despejo para enfim libertar o eu-adulto. A pessoa deve ser vigia de seus atos, deve sempre se perguntar "mas é isso que eu quero fazer?", deve sempre procurar separar o que é ela e o que o outro pôs nela. Somente nós mesmos podemos ver o que está nesse quartinho de despejo, e por causa disso somente nós mesmos podemos tentar jogar esses trastes fora. Outras pessoas podem tentar nos ajudar, mas a ajuda delas se limita a apontar o que deve ser feito - ninguém pode lhe dizer como isso deve ser feito.
O primeiro passo é reconhecer as ações que são originadas no eu-infantil e as que não o são. De início as primeiras serão a esmagadora maioria, visto que ainda se estará operando com a identidade adotada por influência do eu-infantil, e nossos comportamentos refletirão isso. Comportamentos como sermos submissos por causa do medo de perder um emprego, um amor ou um amigo não têm outra origem que não seja o eu-infantil, e como nesses comportamentos em outros podemos perceber as influências que recebemos do outro na constituição da identidade que adotamos. Não se pode ter medo da reação do outro às nossas atitudes, visto que esse medo é uma reação do próprio eu-infantil temendo ser descartado. Devemos seguir no esvaziamento do quartinho de despejo se nosso real objetivo for a felicidade. Jogaremos fora todos os preconceitos, todas as idéias consensuais e todo o ranço que o eu-infantil copiou do outro e armazenou nesse quartinho, e restará apenas o eu-adulto e um quartinho vazio.
O segundo passo já foi descrito por muitos filósofos e um deles, John Locke, deu-lhe o nome de tábula rasa. A idéia é extremamente simples: agora que o quartinho está livre dos entulhos, vamos preenchê-lo com as coisas que realmente serão boas para nós e nos ajudarão a atingir a felicidade. Em resumo, não vamos jogar no quartinho coisas que queremos esquecer que existem, mas vamos guardar nele coisas que vamos usar. Nesse processo será fundamental a sintonia perfeita com o eu-adulto, a centelha divina e o princípio primeiro da humanidade do ser humano. Precisamos saber quem somos realmente, e não como o outro nos olha. Precisamos colocar nesse quartinho não as figurações do outro que não agradaram ao eu-infantil, mas as figurações que nós mesmos temos sobre nós e sobre o mundo. Trata-se de um outro processo de auto-análise e auto-reflexão, mas desta vez em um sentido positivo (encontrar figurações que sejam úteis) e não em um sentido negativo (refutar todas as figurações que o eu-infantil reuniu ao longo de nossas vidas).
Assim o eu-adulto compõe uma nova identidade, que é baseada justamente na figuração que teremos de nós mesmos. Essa identidade nos torna imune aos sofrimentos aos quais éramos sujeitos enquanto tínhamos a identidade providenciada pelo eu-infantil, pois não será o outro quem a definirá, mas nós mesmos. As oscilações nas figurações do outro não afetarão mais nossa felicidade, pois nossa felicidade não se exprime mais pelas figurações que o outro tem de nós mesmos mas sim pelas nossas próprias figurações. Mais do que isso: quando nossa identidade se define pelo eu-adulto, somos quem quisermos ser, e não quem o outro quer que sejamos.

3) A relação entre o eu-infantil, o eu-adulto e o mundo

Já vimos que a fonte do sofrimento é ter uma identidade baseada no eu-infantil e que o segredo para a felicidade é atingir uma identidade definida pelo eu-adulto. Vimos também que a primeira se constrói a partir do que o outro figura da pessoa, e que a segunda se ergue daquilo que a pessoa figura de si mesma. Mas como essas identidades se relacionam com o mundo? Ou, melhor formulando, como é o mundo para uma pessoa que tem uma identidade definida em termos de um eu-infantil e em termos de um eu-adulto? Essas duas perguntas serão respondidas brevemente por dois motivos: o primeiro é que elas se encontram em grande parte respondidas pelo texto, e o segundo é que elas são um convite à reflexão. Sou partidário de que não se deve dar o peixe para o faminto, mas sim ensiná-lo a pescar. Aquele que deseja enveredar-se por esse caminho deve ter em mente que está só e acompanhado ao mesmo tempo: outras pessoas podem dizer o que ele deve fazer, mas ninguém pode dizer como deve fazer.
O mundo para o eu-infantil é definido pelas figurações do outro. Desta maneira, o eu-infantil se coloca numa posição de aceitar a realidade consensual, isto é, as figurações do outro sobre o mundo, sem se importar em questionar ou modificar essas figurações. É uma posição extremamente passiva com relação ao mundo, e sustenta opiniões como "as coisas são desse jeito e por isso não há como mudá-las", "o mundo é um lugar ruim para se viver", e outras posições conformistas ou pessimistas do tipo. Ao mesmo tempo o mundo como um todo existe, para o eu-infantil, em função do outro: o existir não é um existir para-si, mas é um existir para-o-outro. O mundo é uma função matemática definida em relação ao outro, e por isso sempre acaba se trivializando no final.
Já para o eu-adulto o mundo é definido pelas figurações dele. O eu-adulto cria com suas figurações o mundo em que vive, pois não aceita mais passivamente as figurações do outro. Isso não significa que ele rejeita todas sem se questionar, até mesmo porque ele interage com muitos eus-infantis e porque seria uma atitude própria do eu-infantil. O eu-adulto analisa cada uma das figurações do outro e, se as aceita, não é passivamente como o eu-infantil faz, mas sim deliberada e calculadamente. O eu-adulto questiona a realidade consensual no intuito de obter para si (já que o eu-adulto sabe que não pode modificar o outro) uma aparência de realidade muito melhor e mais confortável do que esta que aqui está. O eu-adulto se guia por premissas como "este é o melhor dos mundos possíveis", "a realidade é aquilo que se faz dela" e outras que transmitam os mesmos ideais. O mundo existe, para o eu-adulto, como uma permanente função que vai dele ao mundo: o eu-adulto sabe que o mundo existe enquanto ele estiver ali para percebê-lo, e será tal como ele quiser percebê-lo. O eu-adulto consegue ir mais além: ele se torna capaz de criar um mundo à sua imagem e semelhança, pois ele percebe que o mundo é tal como ele o figurar, ou (o que é a mesma coisa) que o mundo é como ele quiser.

4) O poder da mente sobre a matéria e Considerações Finais

Pelo o que vimos aqui, tornou-se mais claro que o eu-adulto é capaz de feitos simplesmente impossíveis ao eu-infantil. Coisas pequenas deste mundo, como fazer um ônibus aparecer ou ganhar muito dinheiro na Bolsa de Valores ou transformar o escritório em um resort no Tahiti (neste caso, o que mais provavelmente acontecerá é você conseguir um emprego ou uma transferência para o referido lugar) estão ao alcance daqueles que conseguem esvaziar seus quartinhos de despejo e atingir o eu-adulto. Mas ao atingir o eu-adulto simplesmente a pessoa vai querer algo muito maior do que essas simples banalidades - que ajudam muito a vida neste mundo, mas não passam disso: banalidades. Existem estados muito maiores de existência, dos quais conhecemos muito pouco. Um verdadeiro mestre da humanidade, os espíritos de luz que ajudam os homens mortais em suas sendas, todos passaram por esse caminho de atingir o eu-adulto. Agora eles aspiram não os bens materiais, mas os bens espirituais, muito melhores e incorruptíveis. Eu, sinceramente, prefiro ser um deles do que ser uma pessoa muito rica, e por isso não enriqueci. Não vejo esse valor todo que nossa cultura vê no dinheiro; para mim, tê-lo na quantidade necessária para uma vida confortável basta.
Estamos sempre no melhor dos mundos possíveis, e mesmo Voltaire, no auge do deboche em Cândido, concorda com essa afirmação de Leibniz. Mas essas palavras, tais como as que eu escrevi neste texto, se destinam ao coração, e não à mente; se destinam ao espírito, não à razão.

2 comentários:

Dani Cavalheiro disse...

A razão é um grande problema. As pessoas deveriam usar a emoção antes de mais nada. Pelo menos é isso o que eu faço.


=)

Anônimo disse...

concordo com a menina aí de cima.

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