Manual de Instruções

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terça-feira, 3 de março de 2009

Ceticismo em Renée Descartes: a Dúvida Metódica como Método para se Atingir a Certeza Inabalável nas Meditações e sua Conseqüência

Introdução

Conforme evidenciado pelo próprio Descartes em sua carta ao deão e aos reitores da Universidade de Paris, as Meditações foram escritas como sendo um tratado de metafísica, e, como tal, deveria servir de base para sua física, na época a ser escrita. Assim, é natural que Descartes se dedicasse, antes de todo o resto, a encontrar um conhecimento que fosse verdadeiro e seguro, isto é, à prova de dúvidas, posto que, se fundamentasse todas suas conclusões em um princípio indubitável, todo o resto também o seria.

A originalidade de Descartes não está em querer encontrar um princípio indubitável anterior a todos os outros princípios – podemos seguramente dizer que, em Filosofia, o iniciador dessa tendência foi Tales de Mileto, considerado o primeiro filósofo. O grande mérito de Descartes foi ter partido de um ceticismo radical para encontrar sua verdade axiomática, e mais: do fato de duvidar da existência ou da validade dos objetos que o cercavam ele concluiu ser um algo que duvidava, isto é, um algo que existia. O percurso da dúvida cartesiana, também chamada dúvida metódica ou ceticismo metódico, evidencia, também, um grande problema inerente ao ceticismo: esconder um dogmatismo por detrás de sua suspensão do juízo.

Ao longo deste trabalho serão vistos o percurso da dúvida cartesiana, a formulação do cogito ergo sum e a implicação da obtenção de uma certeza dogmática a partir de um ceticismo bastante radical, como se verá a seguir. Após essa ligeira apresentação, segue-se uma conclusão de cunho pessoal aos fatos apresentados.

1. O Caminho da Dúvida Cartesiana: das falsas opiniões tidas como verdadeiras à dúvida generalizada

Descartes inicia as Meditações anunciando que recebera em sua formação “muitas falsas opiniões como verdadeiras”[1], e tendo fundado suas próprias opiniões nessas recebidas deveria empreender árduo trabalho para livrar-se de todas as opiniões e recomeçar do zero, “se quisesse estabelecer algo de firme e constante nas ciências”[2]. Para isso, propõe-se a examinar todas suas antigas opiniões e rejeitar aquelas nas quais encontrasse o menor sinal de incerteza – não uma a uma, mas as maneiras pelas quais as recebera, pois “a ruína dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício”[3].

Assim, ele inicia analisando a maneira mais imediata pela qual ele recebeu suas certezas: os sentidos, seja por experiência direta (por exemplo, ele viu uma árvore), seja por experiência indireta (alguém descreveu para ele uma árvore). Descartes logo os desqualifica, argumentando que fora enganado por eles mais de uma vez e que não seria prudente confiar em quem já o enganara antes. No entanto, os sentidos enganam quanto a objetos distantes, que emitam sons fracos ou que de alguma forma apresentem-se à percepção de maneira obstruída ou diminuída, mas que não é possível, em sã consciência, admitir que os sentidos enganam quanto a fatos próximos: que se possui um corpo, que este corpo está vestido e que este corpo no presente momento lê estas palavras são dados obtidos pelos sentidos mas que, para Descartes, negá-los suporia alguma enfermidade mental[4].

Mas logo a seguir ele analisa que já teve essas mesmas experiências “imediatas”, por assim dizer, em sonho, e que várias vezes essas experiências oníricas foram aparentemente tão ou mais reais que aquelas experiências “imediatas”. Para Descartes isso representa uma dificuldade, pois não existe nenhuma forma segura de saber quando se está dormindo ou quando se está acordado. Mais: as imagens vistas em sonho são produzidas a partir de experiências reais vividas pela pessoa que sonha, por um processo de composição semelhante ao usado pelos pintores para criar suas telas. Assim, ele conclui que coisas como mãos, pés, corpos, etc., devem existir (pois senão nenhum sonho poderia usá-los em suas composições), mas isso não necessariamente garante que a pessoa estaria acordada. Assim, é posto em dúvida a validade dos dados obtidos pelos sentidos mesmo em situações de experiências “imediatas”.

No entanto, mesmo em um sonho a soma dos quadrados dos catetos será igual ao quadrado da hipotenusa em um triângulo retângulo. Mesmo em um sonho determinadas formas geométricas conservarão suas propriedades. O número “quatro” designa a mesma quantidade de objetos seja em vigília ou em sonho. Os objetos da Matemática – tidos como os mais simples e gerais, para Descartes, e como os caracteres com os quais Deus escreveu o Livro da Vida, para Galileu[5] – possuem existência independentemente de existirem na natureza: existindo ou não um quadrado na natureza, todo quadrado possui quatro lados, duas diagonais e área igual ao quadrado do lado. Para Descartes, as verdades matemáticas são tão patentes e evidentes que não seria possível haver nelas qualquer falsidade ou incerteza.

Neste ponto Descartes parece ter encontrado alguma certeza inabalável. Mas a demonstração carece de uma “cláusula de fechamento”, isto é, de algum termo que demonstre se mesmo essas certezas matemáticas são infalíveis ou não. Uma prova empírica e imediata da falsidade da proposição “as certezas matemáticas são infalíveis” seria uma pessoa cometer algum erro em alguma operação matemática simples, tal como as crianças geralmente o fazem enquanto estão aprendendo a tabuada – logo, a matemática não possui esse caráter infalível (reductio ad absurdum). Mas poder-se-ia argumentar que a pessoa que cometeu o erro estava tomada por alguma disposição que a levou errar de maneira tão gritante, e, generalizando esse argumento, Descartes apresenta a seguinte hipótese: se Deus é onipotente, ele pode fazer qualquer pessoa se enganar mesmo quanto às mais simples operações matemáticas. Mas, dado alguns de seus leitores não acreditarem no Deus da Igreja, Descartes reformula sua hipótese, atribuindo seus enganos a alguma imperfeição inerente a si. Se ele é dotado desse tipo de imperfeição, que o leva a cometer enganos, então necessariamente todos os seus conhecimentos anteriormente adquiridos devem ser postos em dúvidas, pois não se poderia discernir quais conhecimentos estão corretos dos quais se cometeu um engano. Com isso Descartes não apenas lançou a dúvida mesmo para além da cristandade como também a universalizou, visto que mesmo sendo obra de Deus o homem é imperfeito e, portanto, passível a erros e enganos.

Mas, para conduzir seu projeto de demolir seus conhecimentos prévios, sobre os quais recai a dúvida por este ou aquele motivo, Descartes reconhece que precisará de grande esforço, pois ele admite não ser fácil livrar-se de idéias com as quais convivera por muito tempo. Assim, ele recorre ao Gênio Maligno, artifício psicológico “que empregou toda a sua indústria em enganar-me”[6]. Assim, mesmo que ele não consiga demolir suas idéias potencialmente enganosas, Descartes pelo menos conseguirá suspender seu juízo sobre elas, e portanto terá atingido pelo menos parte de seu objetivo: livrar-se das falsas idéias recebidas desde a mais tenra infância.

Lançando, pois, mão do Gênio Maligno, Descartes garante a efetividade de sua dúvida: nem mesmo o hábito, o costume, a tradição ou o que quer que seja será capaz de impor verdades, pois estas serão tratadas como ardis do Gênio Maligno. Desta maneira Descartes conseguiu abalar e efetivamente demolir todo o edifício de suas idéias anteriores, pondo-se na posição cética de suspensão do juízo, isto é, o reconhecimento da impossibilidade de dizer que algo é verdadeiro ou falso. Existe apenas a dúvida, e até o presente momento da argumentação Descartes é apenas algo que duvida.

2. A Primeira Certeza Inabalável: como a dúvida radical se converte no pilar das novas certezas cartesianas

Vimos anteriormente como Descartes facilmente desmontou todo o seu conjunto de verdades adquiridas desde a mais jovem idade, e vimos em que situação ele ficou. Toda a possibilidade de conhecimento verdadeiro, pois, fica vedada até que ele encontre uma nova certeza inabalável a partir da qual ele possa reestruturar todo o conjunto. Vimos que ele não tinha mais nenhuma certeza, que Descartes se reduziu a um algo que duvida – não a uma pessoa que duvida, pois mesmo sobre o fato de que ele possui um corpo, etc., pesa a suspensão do juízo provocada pela ação do Gênio Maligno.

Mas será que Descartes – compreendido aqui como esse algo que duvida – de fato existiria? Se esse algo não possui corpo, visto que esse corpo é uma ilusão engendrada nele pelo Gênio Maligno, se um mundo exterior não existe, graças ao mesmo ardil, como esse algo que duvida existe? Decerto esse algo existe, posto que pôde se convencer de que seu corpo e o mundo exterior a ele eram ilusões geradas nele pelo Gênio Maligno. Mais forte que isso: esse algo existe porque está sendo enganado pelo Gênio Maligno. Mais forte ainda: se esse algo não existisse, o Gênio Maligno não estaria enganando esse algo. Por conclusão, e aqui está toda a originalidade de Descartes: enquanto sou enganado pelo Gênio Maligno, enquanto estou na dúvida que ele me engendra, eu existo, ou, na fórmula dada por Descartes à conclusão, eu sou, eu existo – mas apenas enquanto eu a estou enunciando atualmente ou pelo menos enquanto estou sendo enganado pelo Gênio Maligno. Obteve-se, pois, a primeira certeza inabalável.

Descartes, com essa manobra, arrancou do Gênio Maligno sua primeira certeza inabalável, ou, mais precisamente, arrancou de seu ceticismo radical uma certeza que nem mesmo esse ceticismo poderia por em dúvida. É importante notar que o cogito não é a mais importantes das certezas inabaláveis concluídas por Descartes nas Meditações, mas serve como ponto de partida para a obtenção das outras.

3. Uma Certeza Inabalável Arrancada de um Ceticismo Radical: a conseqüência desta possibilidade

Qualquer ceticismo radical, tal como o pirrônico, encontra-se com alguns grandes problemas, conforme percebido por vários autores, dentre eles o professor Roberto Bolzani Filho. Porém vou me deter em apenas uma, evidenciada no texto das Meditações: a obtenção do cogito por Descartes é justamente um dos maiores problemas enfrentados por esse tipo de ceticismo. É importante salientar que essa dificuldade não atinge Descartes, posto que seu ceticismo radical foi apenas metodológico, isto é, serviu justamente para chegar ao cogito.

Em sua forma clássica, o ceticismo afirma que não é possível encontrar nenhum conhecimento verdadeiro e, portanto, deve-se suspender o juízo, isto é, abdicar da possibilidade de distinguir conhecimentos válidos dos falsos. É quase como afirmar “não se preocupe com aquilo para o que você não vai nunca ter resposta – em vez disso, vá viver, pombas!”. Mas já nessa afirmação levemente jocosa evidencia-se a dificuldade enfrentada pelos céticos: se eu suspendo meu juízo, eu tenho que ser algo capaz de fazer isso – ou, como diria Descartes, para que eu possa duvidar eu tenho que ser algo que duvida, portanto eu tenho que existir indubitavelmente. Mas se o cético suspende seu juízo sobre tudo, e isso inclui ele mesmo, logo ou ele admite que pelo menos sobre ele mesmo não poderá suspender seu juízo ou ele aceita que os seus discursos não existem, visto que ele não existe, e portanto o ceticismo seria logicamente impossível.

Mais do que isso: obter algum tipo de certeza inabalável a partir de qualquer forma de ceticismo radical faz com que necessariamente qualquer forma de ceticismo radical esteja fundamentada em algum tipo de certeza inabalável. Descartes, por exemplo, só pode conduzir sua dúvida metódica porque ele era algo que duvidava, algo que existia enquanto duvidava. Qualquer cético radical só poderá suspender seu juízo se ele for algo que existe e capaz de suspender seu juízo e essa existência for indubitável – ou seja, dogmática. Assim, anterior ao ceticismo e fundamental a ele encontra-se sub-repticiamente o dogma da existência do algo que suspenderá seu juízo. Todo o resto pode ser posto em dúvida e até mesmo se revelar como falso, mas o algo que suspenderá seu juízo não poderá jamais deixar de existir indubitavelmente.

4. Conclusão

A partir da análise ligeira da obtenção por Descartes de sua primeira certeza inabalável, podemos perceber a contradição intrínseca inerente a toda e qualquer forma de ceticismo radical, a saber: a necessidade da existência indubitável – e portanto sobre a qual não se poderia suspender o juízo – de um algo que suspende seu juízo sobre as demais coisas. O ceticismo radical, em qualquer uma de suas formas, é contraditório, e portanto não se sustenta frente a uma análise mais atenta.


[1] Meditação Primeira, § 1.

[2] Id., ibid.

[3] Id., § 2.

[4] Id., § 4.

[5] Conforme ele afirma em O Ensaiador.

[6] Id., § 12

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